quarta-feira, 28 de março de 2012

RETALHOS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA- Por Regina Pompeu






Lembranças são como colchas de retalhos, aparecem sem qualquer tipo de lógica ou ordem. Simplesmente vão sendo alinhavadas na nossa memória,  ou na de quem acompanhou os acontecimentos e, claro, nunca são o fiel espelho dos fatos, mas a interpretação de quem os narra.
A mais remota de que tenho notícia é sobre um programa de rádio.
Contada pela minha tia,  creio que somente as pessoas bem mais velhas vão achar graça desta história.
Quando tinha três anos, fui levada a um programa da Rádio Record, onde as crianças tinham que dizer no microfone o nome do patrocinador: ARIGOL.
Fui a única a conseguir e ganhei cem cruzeiros (acho que era esse o dinheiro da época).
Quando o locutor perguntou o que eu faria com o dinheiro, respondi:
_Vou comprar um tico-tico no fubá!
( Tico-tico era a marca do triciclo mais cobiçado pelas crianças.)
Como toda menina, eu tinha muitas bonecas.
Havia uma que andava, mas sua caixa era colocada sobre o guarda-roupa e eu só podia brincar com ela em ocasiões muito especiais, sob a severa vigilância de minha mãe.
Num dia em que ela se distraiu, cortei todo o cabelo da boneca, certa de que cresceria novamente.
Eu as batizava de acordo com a aparência.
A mais bonita se chamava Clarice, inspirada na sobrinha de nosso dentista.
A feia, cujo olho eu já havia furado e rabiscado inteirinha, tinha o nome de Jelembárdia.
Até hoje não sei de onde tirei esse nome!
Quando eu era bem pequena, a única diversão das famílias era o cinema, pois eram muito raras as que possuíam aparelho de televisão.
Quando o filme era impróprio para crianças, meus pais me deixavam na casa de meus avós.
Eu ficava deitada no meio dos dois, e meu avô começava a contar a história da formiguinha desobediente.
Minha avó, muito cansada, começava a cochilar.
Nessa hora, ele piscava para mim e, como parte da história, gritava: FORMIGUINHA, ONDE VOCÊ ESTÁ???????
Minha avó acordava assustada e nós ríamos muito.
(Mais tarde, já na faculdade, eu tinha aulas de segunda a sábado e o domingo era o único dia em que podia dormir até tarde. Ele vinha bem cedo, me cutucava e dizia:
_ Nêga, sua avó queria te acordar, mas eu não deixei. Você não acha que fiz bem? Não vai me agradecer?)
Sempre fui muito faladeira, qualidade que divertia a família, mas que passou a preocupar minha mãe quando estava chegando a minha hora de ir para o primeiro ano primário.
Ela dizia que não deveria abrir a boca na classe, e recomendou tanto que, após algumas semanas de aula, a professora a chamou para perguntar se eu era muda, pois só me comunicava por gestos.
Depois disso, nunca mais parei de falar.
Quando o mês de junho estava próximo, a professora organizou a quadrilha.
A mim coube como par o menino de quem eu gostava.
Muito tímida, percebi a oportunidade de chegar mais perto, ficar de mãos dadas, etc..
Mas Ariovaldo, o pior aluno da classe, disse:
_Só danço se for com a Regina!
Pressionada pela professora, e pelas mães (minha e do menino), acabei cedendo, mas a frustração foi imensa e o arrependimento por ter cedido maior ainda.
Embora já tenham se passado mais de cinquenta anos, toda vez que ouço falar em chantagem afetiva, esse episódio me vem à lembrança.
Quando passei para o quarto ano, caí na classe de Dona Eutalia (Lia).
Creio que ela já estava bastante cansada do magistério e permitia que os alunos quase derrubassem a classe.
As carteiras eram duplas e sentávamos em casais.
Os meninos, em plena idade do Clube do Bolinha, barbarizavam as meninas.
Uma vez, minha saia pregueada azul marinho se abriu e avançou sobre a metade da carteira que era do meu parceiro, que não teve dúvida e riscou meu uniforme com giz branco, demarcando, assim, seu território.
Filha única de modista, sempre limpa e arrumadinha, cheguei à minha casa aos prantos,
No dia seguinte, meu pai foi falar com o diretor, que se recusou a me transferir de classe.
Diante disso, meu pai ameaçou fazer queixa à sua prima, inspetora de ensino em Campinas.
No dia seguinte fui colocada na classe de Dona Zuleika, considerada a melhor professora da escola.
Foi ela quem me preparou para o exame de admissão ao ginásio, era ela quem dizia que algum dia eu seria escritora e foi nesse ano que ganhei a medalha concedida pelo Governador do Estado ao melhor aluno de cada Grupo Escolar.
Tenho procurado bastante, pela internet e listas telefônicas, mas ainda não consegui localizá-la. Se ainda estiver viva, deve ter um pouco mais de oitenta anos.
Outro fato inesquecível: meu aniversário sem festa.
Nasci na Páscoa e a data sempre caiu muito próxima da semana santa.
Então, era a sequência: brigadeiros, bolos, ovos de chocolate (ou vice-versa), dor de barriga, médico, purgante e lavagens intestinais.
Perto de completar nove anos, começou a dor de barriga e minha mãe, certa de tratar-se do mesmo processo, me deu purgante e me aplicou duas lavagens.
No entanto, a dor não cedia e tive de ir ao médico.
Ao me examinar, ele disse à minha mãe:
_ Você quase matou sua filha. Procure um cirurgião com a máxima urgência, pois ela está com apendicite aguda.
Foi assim que passei meu aniversário no hospital, onde todas as pessoas que costumavam ir às minhas festas compareceram para me visitar, fazendo um barulho danado.
Minha mãe sofria do coração e toda a família temia  lhe causar qualquer  dissabor, e eu não fugia à regra.
Porém, numa tarde, eu devia ter uns doze anos,  voltei da escola e minha mãe não estava em casa.
Tive a brilhante idéia de me esconder para lhe dar um susto quando chegasse.
Assim, eu e a amiguinha que me acompanhava entramos no guarda roupa, mas, como minha mãe demorou, acabamos adormecendo.
Quando acordamos, o tumulto estava armado, minha mãe havia refeito todo o caminho da escola e já estava a ponto de chamar a polícia.
Quase morta de susto, não sabia se me batia ou me beijava.
Acho que fez os dois...
(Anos depois, após brigarmos, meu filho se escondeu atrás de um móvel, deixando uma carta de despedida sobre a mesa, informando que estava fugindo de casa. Só então pude compreender o que minha mãe havia passado!)
Na Copa do Mundo do Chile, em 1962, a doença de minha mãe já havia se agravado muito.
No dia da final, para que ela não ficasse nervosa, nós e as demais mulheres da casa fomos ao cinema assistir à Paixão de Cristo.
Na hora da crucificação, os poucos gatos pingados que estavam no cinema choravam copiosamente, quando se ouviu um grito:
_ Goooool!!!!
Claro que era outro torcedor nervoso que, inconformado, havia levado consigo o rádio de pilha.
Nem é preciso dizer que, a partir daquele instante, a atenção de todos se voltou para a transmissão do rádio, deixando de lado o final do filme que, aliás, era mais que conhecido.
Ao sairmos do cinema, já havia um carnaval na rua, em comemoração ao bicampeonato do Brasil.
A lição de vida mais marcante que aprendi na adolescência, aconteceu pouco mais de um ano depois.
Meu pai havia trabalhado por alguns anos numa importadora de “secos e molhados”.
As mercadorias vinham de navio e era fatal que, durante a viagem, algumas peças se quebrassem.
Periodicamente o proprietário vendia os jogos desfalcados aos empregados, a preços bem reduzidos.
Dessa forma, minha mãe possuía lindos pratos de porcelana inglesa, copos e cálices de cristal da Boêmia, que nunca usava, pois estavam sempre guardados para ocasiões especiais.
Quando ela morreu, meu pai pendurou um armário na parede da casa de minha avó, onde fomos morar, e nele colocou todas essas louças, que eram minha herança.
Mal ele havia posto a última peça, o armário veio abaixo.
Nada restou inteiro!
Talvez seja essa a razão pela qual uso diariamente meus melhores utensílios e jamais deixo para depois a estreia de um novo sapato ou roupa.
Aprendi a duras penas que todos os dias são especiais, basta estarmos vivos e dispostos a festejar a beleza de cada um.













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