segunda-feira, 12 de setembro de 2016

KAKÁ

Kaká

Campinas, dezembro de 2001
Meu marido agonizava em Caraguá.
Fui visitar meu pai, que se encontrava muito doente, e meu filho resolveu parar num petshop, pois queria comprar um cachorro poodle, de preferência fêmea. O dono indicou uma criadora e lá fomos nós. 
Ela foi buscar os filhotes e, junto com uma fêmea branca, surgiu uma bolinha de pelos cor de champanhe, pulando e abanando o rabo, correndo em minha direção. E eu, que sempre preferi gatos (cheguei a ter quatro), não consegui sair de lá sem aquele ser minúsculo, que cabia na palma da minha mão.
Alguns dias depois, meu marido morreu e o Kaká (foi esse o nome que lhe dei, em homenagem ao grande jogador do São Paulo) conseguiu amenizar em parte a dor da minha perda.

Caraguatatuba, setembro de 2016
Foram quinze anos de amor incondicional.
Durante muito tempo, ele foi minha única companhia.
Quase morreu alguns dias depois de chegar. O apartamento fora dedetizado e ele comeu uma barata envenenada. Foi salvo por milagre!
Aos poucos, seu pelo foi ficando branco, mas se manteve macio.
Sem experiência no trato com cachorros, comprei um livro para me orientar.
Aprendi a borrifar um pouco de água em seu focinho quando fazia alguma coisa errada. Logo, bastava que lhe mostrasse o frasco de água para que ele me obedecesse.
Após a vacinação obrigatória, começamos a caminhar diariamente pela avenida da praia.
Foram muitas as aventuras que vivemos.
No início, eu o deixava solto na areia e ele foi perseguido por uma coruja enfurecida. A partir daí, quando ia chegando perto da toca, ele andava bem pertinho de mim, até que se sentisse fora de perigo.
Certa vez, um rapaz me pediu o telefone do cachorro. Embora seja uma cantada super manjada, aos sessenta anos, não pude deixar de me sentir lisonjeada.
O Kaká tentou namorar a Sofia, poodle cinza, da dona do quiosque, mas não foi competente e ela acabou tendo filhotes de outro.
Jamais latiu ou aceitou a provocação de outros cachorros. Seguia firme, na dele, num trote constante e alegre.
À noite,  eu desligava a televisão e dizia: "Bom, vamos dormir."
Sem querer, a senha para que ele corresse para a caminha passou a ser: Booooooommmmmm.
Para evitar que ele pulasse nas pessoas, dizia para pegar o "brinquedo" (um osso), como  boas vindas. A alegria era tanta, que nem sempre ele atendia. E eu fiquei durante 15 anos repetindo: "vai buscar o brinquedo!" E, quando ele obedecia: "Que menino bonito!"
Era um cãozinho dócil e brincalhão.
Sabia como se comportar com cada um de nós.
Só entrava no meu quarto quando meu marido (sim, me casei novamente) não estava.
No primeiro contato, sempre pedia comida e, se a pessoa desse, ele nunca esquecia e ela jamais teria sossego às refeições.
Guloso, assim que eu me aproximava da pia, lá vinha ele em busca do olhinho do tomate, do pedacinho de banana ou manga.
Enlouquecia quando alguém comia mexerica.
Dividia alegremente comigo uma travessa de pipoca ou um pacote de biscoito de polvilho.
Há aproximadamente seis anos, começou a dar sinais de cansaço durante as caminhadas.
Por ironia, sua doença era a mesma que levou minha mãe: válvula mitral dilatada, que força o coração a bater mais, fazendo com que ele cresça e pressione outros órgãos.
Passei a levá-lo a passeios mais curtos, duas vezes ao dia.
Quando chegava a hora, ele me encarava, chorava ou latia, me lembrando do compromisso.
Às vezes, era necessário complementar a medicação com xarope. Quando ele me via com a seringa na mão, ia saindo de fininho, e se escondia debaixo da mesa!
Nos últimos dias, apesar da rotina ser a mesma, sua tosse havia aumentado.
Ontem, fomos ao cinema e, quando voltamos, ele nos recebeu com tanta alegria que acabou desmaiando. Isso já havia acontecido antes.
Sentei no chão e o acariciei até que recobrasse a consciência.
A tosse não dava trégua e liguei para o Chico, veterinário que sempre cuidou dele.
Marcamos uma consulta para hoje.
Mas, não deu tempo. A respiração ofegante substituiu a tosse.
Tentou se erguer, mas caiu e eu fiquei assistindo, impotente, seus últimos momentos, até que sua respiração cessou.
Ele se foi, deixando um enorme vazio na casa e, principalmente, dentro de mim.
Seu coração era grande demais e não coube em seu peito!