segunda-feira, 26 de março de 2012

NÃO DÁ PRA DEIXAR PASSAR- por Rita Figueiredo



Em nosso papel de consumidores, usuários e clientes, o que a gente faz quando se depara com situações inaceitáveis, como descobrir que adquiriu um produto com defeito ou impróprio para consumo? E quando se é mal atendido? E quando não se é atendido? E quando se descobre que as coisas não funcionam devido a puro descaso ou irresponsabilidade? E quando a gente se sente desrespeitada ou ameaçada? O que a gente faz?
É claro que existe o Procon, e ele funciona, mas nem sempre a gente quer se incomodar com a burocracia e o tempo de espera. E tem mais: nem sempre se trata de uma questão que o Procon possa resolver. Por exemplo, se o prédio em que moro está em péssimas condições; se a minha Internet não funciona; se o livro recém adquirido está cheio de erros ortográficos; se não concordo com os métodos adotados em um curso; se fui desrespeitada pelo motorista numa viagem de ônibus; se me entregam a pizza errada e se negam a refazê-la; se a atendente da central de meu plano de saúde não consegue achar meu cadastro. Coisas aparentemente pequenas, mas que podem trazer grande transtorno. E o que a gente faz? A gente limita-se a engolir e/ou sair por aí, falando mal.
A gente – essa entidade coletiva, anônima e amorfa que, levada pelos velhos condicionamentos, prefere acomodar-se por trás da maledicência entre dentes, propagada nos portões, nas esquinas, nas filas, nos elevadores, nas mesas do boteco, do trabalho, de casa, da manicure...:
- Menina! Olha só o que me aconteceu no supermercado tal...
- Com você também?! Que coisa! Já fizeram isso comigo no banco tal. A gente é nada para eles. Esse mundo não tem mais jeito mesmo!
Mas tem! Tem jeito sim. Deixar de se esconder atrás de a gente, e agir. Ser agente.
Bem, no meu caso, desde que me conheço por agente, sou respaldada por uma espécie de Procon Interior, sempre pronto a intervir nas tais situações inaceitáveis, em defesa de meus direitos de consumidora, usuária, cliente, de cidadã enfim. Mas para receber tal cobertura é preciso entrar com um processo, ou melhor, entrar num processo.
A coisa se desencadeia a partir de um exacerbado e inato senso de justiça, o qual se alvoroça toda vez que me vejo submetida a algo inadmissível, na condição de consumidora, usuária, cliente, cidadã. E vem a reação, em forma de indignação. Indignação: a mola propulsora. Uma adrenalina que fica instigando: você-tem-que-fazer-alguma-coisa, até que eu me mova. Perigoso substrato egóico que muitas vezes me induziu a tornar a raiva combustível, tanto para uma ruidosa explosão (raramente eficaz na solução dos problemas) quanto para uma calada auto-implosão (reconhecidamente nefasta e insalubre). Eu já tinha, portanto, experiência de sobra para me convencer de que bater boca, xingar, espernear, cara a cara, era um tiro que saía pela culatra, quase sempre me tornando vilã da história. Por outro lado, deixar passar sem falar nada me fazia sentir traidora de meus próprios direitos.
Então, como fazer alguma coisa? Foi preciso perder muita estribeira, passar muita vergonha, amargar muito desaforo, até descobrir que havia um jeito mais apropriado de atender ao clamor da indignação: o silêncio. Experimentei substituir a reação imediata (quase sempre distorcida por causa do desequilíbrio emocional) pelo silêncio. A princípio, o ego não se conformava em calar a boca.
Mas esse apenas era o primeiro passo: silenciar, levar o desaforo para casa e somente a partir daí fazer alguma coisa, sempre em silêncio. A etapa seguinte exigia que a resposta, tendo abdicado do alarde proclamado na ponta da língua, passasse a se expressar por intermédio da ponta dos dedos, buscando o inegável impacto da silenciosa palavra escrita.
Em tempos passados, eu pegava a caneta e/ou a máquina de escrever. Hoje, sento ao computador e faço alguma coisa, através de cartas, e-mails, mensagens em sites, sacs, escolhendo criteriosa e criativamente a melhor maneira, tanto de expressar sentimentos como de chamar à responsabilidade quem é de dever. Em alguns casos, esse quem já foi previamente pesquisado, de forma que minha mensagem chegue a alguém em posição de comando, que é minuciosamente colocado a par da situação e cujos brios são sensibilizados, no sentido de levá-lo a tomar as devidas providências na solução do problema ali apresentado.
Na grande maioria dos retornos que recebo, seja de empresas, instituições ou profissionais autônomos, vem demonstrada a importância que é dada a reclamações e solicitações como ferramentas valiosas para a melhoria na qualidade dos produtos, serviços e atendimentos. Ainda bem, porque isso ajuda a abrandar minhas dúvidas quanto a se o tal Procon Interior não seria mais uma manifestação do ego, aquele que provocava as antigas explosões e implosões, quiçá agora abrigado sob um sofisticado disfarce... (Já teve “a gente” que ironizou, dizendo que fico louquinha que algo dê errado, só para eu poder lascar minha carta de reclamação...)
Eu cá comigo parei de questionar a origem das razões subjetivas que me levam a fazer valer meus direitos. Comecei a achar engraçado o jeitão, elaborado no verbo, que encontrei para manifestar indignação, chamando na chincha quem não trata o cidadão com o merecido respeito. Meus motivos são individuais, mas pelo estremecimento causado na maioria de meus destinatários, o resultado acaba certamente beneficiando também o coletivo.
Pelo sim pelo não, você que me lê tire suas próprias conclusões. Quem sabe esteja precisando purgar alguma zanga que lhe rói por dentro, devido a produtos com defeito ou impróprios, maus tratos, mau atendimento, desrespeito ou descaso em sua condição de consumidor, usuário, cliente, cidadão. Tomara que se inspire a igualmente fazer bom uso de sua indignação através da poderosa palavra escrita, saindo dessa posição de “a gente”, para se tornar mais um agente a criar seu próprio Procon Interior, pois do jeito que a coisa anda por aí, NÃO DÁ PRA DEIXAR PASSAR.

Importante: O texto acima é a Introdução do livro com o mesmo nome.
Foi atendendo a inúmeros pedidos que resolvi organizar uma coletânea contendo todas as reclamações e reivindicações que, durante anos, tenho feito a empresas, lojas, bancos, cartões de crédito, planos de saúde, repartições públicas, escolas, editoras, profissionais de toda espécie, etc., a maioria seguida dos respectivos retornos portadores de soluções, ressarcimentos, retratações. No entanto, sou consciente de que este livro jamais poderá ser publicado. Considerando as presumíveis implicações legais que a exposição dos envolvidos certamente acarretaria para a autora, a obra está fadada a ficar circunscrita a seu formato original, cuja leitura deverá se restringir ao âmbito de familiares e amigos.

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