Em nosso papel de consumidores, usuários e clientes, o que a gente faz
quando se depara com situações inaceitáveis, como descobrir que adquiriu um
produto com defeito ou impróprio para consumo? E quando se é mal atendido? E
quando não se é atendido? E quando se
descobre que as coisas não funcionam devido a puro descaso ou
irresponsabilidade? E quando a gente se sente desrespeitada ou ameaçada? O que
a gente faz?
É claro que existe o Procon,
e ele funciona, mas nem sempre a gente quer se incomodar com a burocracia e o
tempo de espera. E tem mais: nem sempre se trata de uma questão que o Procon
possa resolver. Por exemplo, se o prédio em que moro está em péssimas
condições; se a minha Internet não funciona; se o livro recém adquirido está
cheio de erros ortográficos; se não concordo com os métodos adotados em um
curso; se fui desrespeitada pelo motorista numa viagem de ônibus; se me
entregam a pizza errada e se negam a refazê-la; se a atendente da central de
meu plano de saúde não consegue achar meu cadastro. Coisas aparentemente
pequenas, mas que podem trazer grande transtorno. E o que a gente faz? A gente
limita-se a engolir e/ou sair por aí, falando mal.
A gente – essa entidade coletiva, anônima e amorfa que,
levada pelos velhos condicionamentos, prefere acomodar-se por trás da
maledicência entre dentes, propagada nos portões, nas esquinas, nas filas, nos
elevadores, nas mesas do boteco, do trabalho, de casa, da manicure...:
- Menina! Olha só o que me aconteceu
no supermercado tal...
- Com você também?! Que coisa!
Já fizeram isso comigo no banco tal. A gente é nada para eles. Esse mundo não
tem mais jeito mesmo!
Mas tem! Tem jeito sim. Deixar de se esconder atrás de a gente, e agir. Ser agente.
Bem, no meu caso, desde que me conheço por agente, sou respaldada por uma espécie de Procon Interior, sempre
pronto a intervir nas tais situações inaceitáveis, em defesa de meus direitos
de consumidora, usuária, cliente, de cidadã enfim. Mas para receber tal
cobertura é preciso entrar com um processo, ou melhor, entrar num processo.
A coisa se desencadeia a partir de um exacerbado e inato senso de
justiça, o qual se alvoroça toda vez que me vejo submetida a algo inadmissível,
na condição de consumidora, usuária, cliente, cidadã. E vem a reação, em forma
de indignação. Indignação: a mola propulsora. Uma adrenalina que fica
instigando: você-tem-que-fazer-alguma-coisa,
até que eu me mova. Perigoso substrato egóico que muitas vezes me induziu a
tornar a raiva combustível, tanto para uma ruidosa explosão (raramente eficaz
na solução dos problemas) quanto para uma calada auto-implosão
(reconhecidamente nefasta e insalubre). Eu já tinha, portanto, experiência de
sobra para me convencer de que bater boca, xingar, espernear, cara a cara, era
um tiro que saía pela culatra, quase sempre me tornando vilã da história. Por
outro lado, deixar passar sem falar nada me fazia sentir traidora de meus próprios
direitos.
Então, como fazer alguma coisa? Foi preciso perder
muita estribeira, passar muita vergonha, amargar muito desaforo, até descobrir
que havia um jeito mais apropriado de atender ao clamor da indignação: o silêncio. Experimentei substituir a
reação imediata (quase sempre distorcida por causa do desequilíbrio emocional)
pelo silêncio. A princípio, o ego não se conformava em calar a boca.
Mas esse apenas era o primeiro passo: silenciar, levar o desaforo para
casa e somente a partir daí fazer alguma coisa, sempre em silêncio. A etapa seguinte
exigia que a resposta, tendo abdicado do alarde proclamado na ponta da língua, passasse a se expressar
por intermédio da ponta dos dedos,
buscando o inegável impacto da silenciosa palavra
escrita.
Em tempos passados, eu pegava a caneta e/ou a máquina de escrever.
Hoje, sento ao computador e faço alguma
coisa, através de cartas, e-mails, mensagens em sites, sacs, escolhendo criteriosa e
criativamente a melhor maneira, tanto de expressar sentimentos como de chamar à
responsabilidade quem é de dever. Em alguns casos, esse quem já foi previamente pesquisado, de forma que minha mensagem
chegue a alguém em posição de comando, que é minuciosamente colocado a par da
situação e cujos brios são sensibilizados, no sentido de levá-lo a tomar as
devidas providências na solução do problema ali apresentado.
Na grande maioria dos retornos que recebo, seja de empresas,
instituições ou profissionais autônomos, vem demonstrada a importância que é
dada a reclamações e solicitações como ferramentas valiosas para a melhoria na
qualidade dos produtos, serviços e atendimentos. Ainda bem, porque isso ajuda a
abrandar minhas dúvidas quanto a se o tal Procon
Interior não seria mais uma manifestação do ego, aquele que provocava as
antigas explosões e implosões, quiçá agora abrigado sob um
sofisticado disfarce... (Já teve “a
gente” que ironizou, dizendo que fico louquinha que algo dê errado, só para
eu poder lascar minha carta de
reclamação...)
Eu cá comigo parei de questionar a origem das razões subjetivas que me
levam a fazer valer meus direitos. Comecei a achar engraçado o jeitão, elaborado
no verbo, que encontrei para manifestar indignação, chamando na chincha quem
não trata o cidadão com o merecido respeito. Meus motivos são individuais, mas pelo
estremecimento causado na maioria de meus destinatários, o resultado acaba certamente
beneficiando também o coletivo.
Pelo
sim pelo não, você que me lê tire suas próprias conclusões. Quem sabe esteja
precisando purgar alguma zanga que lhe rói por dentro, devido a produtos com
defeito ou impróprios, maus tratos, mau atendimento, desrespeito ou descaso em
sua condição de consumidor, usuário, cliente, cidadão. Tomara que se inspire a
igualmente fazer bom uso de sua indignação através da poderosa palavra escrita,
saindo dessa posição de “a gente”,
para se tornar mais um agente a
criar seu próprio Procon Interior,
pois do jeito que a coisa anda por aí, NÃO DÁ PRA DEIXAR PASSAR.
Importante: O texto acima é a Introdução do livro com o
mesmo nome.
Foi atendendo a inúmeros pedidos que resolvi organizar uma coletânea contendo todas
as reclamações e reivindicações que, durante anos, tenho feito a empresas,
lojas, bancos, cartões de crédito, planos de saúde, repartições públicas,
escolas, editoras, profissionais de toda espécie, etc., a maioria seguida dos
respectivos retornos portadores de soluções, ressarcimentos, retratações. No
entanto, sou consciente de que este livro jamais poderá ser publicado. Considerando
as presumíveis implicações legais que a exposição dos envolvidos certamente
acarretaria para a autora, a obra está fadada a ficar circunscrita a seu
formato original, cuja leitura deverá se restringir ao âmbito de familiares e
amigos.
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