sábado, 31 de março de 2012

EXPRESSAR - por Rita Figueiredo

Expressar?
Sentimentos, que tormento! Negativos, positivos, que será que vão dizer?
Sensações que são milhões vêm de cima, vêm de baixo, que canal hei de escolher?
Tanto amor, tanto temor, no avesso, no direito, que efeito hão de ter?
Amargura ou ternura? Qual de dentro? Qual de fora? Como é que vou saber?
Ser raivosa ou graciosa? Incomodar? Acomodar? Pra que lado vou pender?
Pôr na cara essa tara, sutilmente ou em aberto? Quem de certo vai entender?
Inspiração, expiração, rei na barriga, nó no peito, como vou me defender?
Feminina, masculina, ser da mãe ou ser do pai? Qual dos dois vai me querer?
Sou et ou sou terráquea? Criar asas ou raiz? A que espaço pertencer?
Ter juízo ou ser Narciso? Busco nexo, encontro sexo. Alguém me diga o que fazer!

A dualidade me consome. Peço ajuda à Unidade e já começo a receber :

Expressar!
Ir sentindo e ir dizendo, bem na hora, ou ir embora e ver o tempo se perder
Na saúde, na doença, no mental, no corporal, há que integrar para crescer
Tirar a máscara, a armadura, ver no claro o que é do escuro, sair do jogo de esconder
Verbalmente, gestualmente, solta aqui, libera ali, pro que é de meu transparecer
Abro o peito e do meu jeito, explosivo ou criativo, vou expondo o meu ser
Em linguagem calorosa, flui o verbo em verso e prosa, viro um livro pra se ler
Seja pânico, seja cósmico, faço música, torno cômico, pro espetáculo acontecer
Erro o passo, sou palhaço; uiva a loba, chora a boba, pra platéia enlouquecer
Conto causo, espero aplauso, pode ser até que eu saia se a vaia aparecer

Mas... o coração se agita que a expressão ainda é restrita ao que se pode entender
Não faz mal, tenho paciência, vou tomando consciência da importância que é poder
me expressar
Vem comigo, meu amigo, te garanto que meu canto é de expressar pra não sofrer
Põe pra fora, está na hora, toma parte nesta arte de se dar a conhecer.
Se eu sou eu, você é você, com os trejeitos e defeitos, o que havemos de temer?
Somos iguais em nossa essência, o que difere é a experiência. Essa é a graça do viver!

Harmonizar a nossa voz neste Coral Universal,
por onde a Vida tem prazer em se expressar.

quinta-feira, 29 de março de 2012

HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO- PARTE II- MARINA-Por Regina Pompeu

Marina
Era uma das candidatas à vaga de estagiária em meu departamento.
Aluna do primeiro ano de História, me pareceu a mais adequada para o cargo.
Quando a chamei para informar que havia sido escolhida, disse que precisava me contar uma coisa muito importante: era soropositivo havia mais de dez anos.
Para mim esse fato não era um impedimento para sua contratação, mas, para preservá-la de qualquer tipo de preconceito, sugeri que não comentasse com outras pessoas.
Aos poucos, fui conhecendo sua história.
Ficara grávida aos quinze anos e, na época, sua filha já estava com dezessete.
Casara cedo (não com o pai de sua filha) e fora seu marido, dependente químico que morrera de AIDS, quem a infectara.
Morava com a mãe numa cidade vizinha e vinha diariamente de ônibus para a faculdade.
Ia mensalmente ao Hospital das Clínicas em São Paulo para controle e retirada dos medicamentos e acompanhara o desaparecimento de um a um de seus “colegas” de tratamento. Muitos haviam vendido tudo o que tinham, desistido de qualquer projeto, pois não alimentavam qualquer esperança de futuro.
Comentava comigo o quanto era difícil conviver com a sentença de morte e com os efeitos colaterais da medicação.
Trabalhamos juntas durante um ano e jamais a vi de mau humor.
Após minha saída da instituição, continuei acompanhando sua trajetória.
Durante algum tempo namorou um médico da cidade.
Sua filha, que também estudava na faculdade, ficou grávida aos vinte e dois anos, e, assim, Marina se tornou avó aos trinta e oito.
Hoje mora em São Paulo com a filha ( que trabalha e estuda)e a neta de dois anos.
Formada, percebeu que não tem vocação para o magistério e atualmente está à procura de um emprego na área administrativa para poder se dedicar ao que realmente gosta de fazer: trabalhar com dependentes químicos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

RETALHOS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA- Por Regina Pompeu






Lembranças são como colchas de retalhos, aparecem sem qualquer tipo de lógica ou ordem. Simplesmente vão sendo alinhavadas na nossa memória,  ou na de quem acompanhou os acontecimentos e, claro, nunca são o fiel espelho dos fatos, mas a interpretação de quem os narra.
A mais remota de que tenho notícia é sobre um programa de rádio.
Contada pela minha tia,  creio que somente as pessoas bem mais velhas vão achar graça desta história.
Quando tinha três anos, fui levada a um programa da Rádio Record, onde as crianças tinham que dizer no microfone o nome do patrocinador: ARIGOL.
Fui a única a conseguir e ganhei cem cruzeiros (acho que era esse o dinheiro da época).
Quando o locutor perguntou o que eu faria com o dinheiro, respondi:
_Vou comprar um tico-tico no fubá!
( Tico-tico era a marca do triciclo mais cobiçado pelas crianças.)
Como toda menina, eu tinha muitas bonecas.
Havia uma que andava, mas sua caixa era colocada sobre o guarda-roupa e eu só podia brincar com ela em ocasiões muito especiais, sob a severa vigilância de minha mãe.
Num dia em que ela se distraiu, cortei todo o cabelo da boneca, certa de que cresceria novamente.
Eu as batizava de acordo com a aparência.
A mais bonita se chamava Clarice, inspirada na sobrinha de nosso dentista.
A feia, cujo olho eu já havia furado e rabiscado inteirinha, tinha o nome de Jelembárdia.
Até hoje não sei de onde tirei esse nome!
Quando eu era bem pequena, a única diversão das famílias era o cinema, pois eram muito raras as que possuíam aparelho de televisão.
Quando o filme era impróprio para crianças, meus pais me deixavam na casa de meus avós.
Eu ficava deitada no meio dos dois, e meu avô começava a contar a história da formiguinha desobediente.
Minha avó, muito cansada, começava a cochilar.
Nessa hora, ele piscava para mim e, como parte da história, gritava: FORMIGUINHA, ONDE VOCÊ ESTÁ???????
Minha avó acordava assustada e nós ríamos muito.
(Mais tarde, já na faculdade, eu tinha aulas de segunda a sábado e o domingo era o único dia em que podia dormir até tarde. Ele vinha bem cedo, me cutucava e dizia:
_ Nêga, sua avó queria te acordar, mas eu não deixei. Você não acha que fiz bem? Não vai me agradecer?)
Sempre fui muito faladeira, qualidade que divertia a família, mas que passou a preocupar minha mãe quando estava chegando a minha hora de ir para o primeiro ano primário.
Ela dizia que não deveria abrir a boca na classe, e recomendou tanto que, após algumas semanas de aula, a professora a chamou para perguntar se eu era muda, pois só me comunicava por gestos.
Depois disso, nunca mais parei de falar.
Quando o mês de junho estava próximo, a professora organizou a quadrilha.
A mim coube como par o menino de quem eu gostava.
Muito tímida, percebi a oportunidade de chegar mais perto, ficar de mãos dadas, etc..
Mas Ariovaldo, o pior aluno da classe, disse:
_Só danço se for com a Regina!
Pressionada pela professora, e pelas mães (minha e do menino), acabei cedendo, mas a frustração foi imensa e o arrependimento por ter cedido maior ainda.
Embora já tenham se passado mais de cinquenta anos, toda vez que ouço falar em chantagem afetiva, esse episódio me vem à lembrança.
Quando passei para o quarto ano, caí na classe de Dona Eutalia (Lia).
Creio que ela já estava bastante cansada do magistério e permitia que os alunos quase derrubassem a classe.
As carteiras eram duplas e sentávamos em casais.
Os meninos, em plena idade do Clube do Bolinha, barbarizavam as meninas.
Uma vez, minha saia pregueada azul marinho se abriu e avançou sobre a metade da carteira que era do meu parceiro, que não teve dúvida e riscou meu uniforme com giz branco, demarcando, assim, seu território.
Filha única de modista, sempre limpa e arrumadinha, cheguei à minha casa aos prantos,
No dia seguinte, meu pai foi falar com o diretor, que se recusou a me transferir de classe.
Diante disso, meu pai ameaçou fazer queixa à sua prima, inspetora de ensino em Campinas.
No dia seguinte fui colocada na classe de Dona Zuleika, considerada a melhor professora da escola.
Foi ela quem me preparou para o exame de admissão ao ginásio, era ela quem dizia que algum dia eu seria escritora e foi nesse ano que ganhei a medalha concedida pelo Governador do Estado ao melhor aluno de cada Grupo Escolar.
Tenho procurado bastante, pela internet e listas telefônicas, mas ainda não consegui localizá-la. Se ainda estiver viva, deve ter um pouco mais de oitenta anos.
Outro fato inesquecível: meu aniversário sem festa.
Nasci na Páscoa e a data sempre caiu muito próxima da semana santa.
Então, era a sequência: brigadeiros, bolos, ovos de chocolate (ou vice-versa), dor de barriga, médico, purgante e lavagens intestinais.
Perto de completar nove anos, começou a dor de barriga e minha mãe, certa de tratar-se do mesmo processo, me deu purgante e me aplicou duas lavagens.
No entanto, a dor não cedia e tive de ir ao médico.
Ao me examinar, ele disse à minha mãe:
_ Você quase matou sua filha. Procure um cirurgião com a máxima urgência, pois ela está com apendicite aguda.
Foi assim que passei meu aniversário no hospital, onde todas as pessoas que costumavam ir às minhas festas compareceram para me visitar, fazendo um barulho danado.
Minha mãe sofria do coração e toda a família temia  lhe causar qualquer  dissabor, e eu não fugia à regra.
Porém, numa tarde, eu devia ter uns doze anos,  voltei da escola e minha mãe não estava em casa.
Tive a brilhante idéia de me esconder para lhe dar um susto quando chegasse.
Assim, eu e a amiguinha que me acompanhava entramos no guarda roupa, mas, como minha mãe demorou, acabamos adormecendo.
Quando acordamos, o tumulto estava armado, minha mãe havia refeito todo o caminho da escola e já estava a ponto de chamar a polícia.
Quase morta de susto, não sabia se me batia ou me beijava.
Acho que fez os dois...
(Anos depois, após brigarmos, meu filho se escondeu atrás de um móvel, deixando uma carta de despedida sobre a mesa, informando que estava fugindo de casa. Só então pude compreender o que minha mãe havia passado!)
Na Copa do Mundo do Chile, em 1962, a doença de minha mãe já havia se agravado muito.
No dia da final, para que ela não ficasse nervosa, nós e as demais mulheres da casa fomos ao cinema assistir à Paixão de Cristo.
Na hora da crucificação, os poucos gatos pingados que estavam no cinema choravam copiosamente, quando se ouviu um grito:
_ Goooool!!!!
Claro que era outro torcedor nervoso que, inconformado, havia levado consigo o rádio de pilha.
Nem é preciso dizer que, a partir daquele instante, a atenção de todos se voltou para a transmissão do rádio, deixando de lado o final do filme que, aliás, era mais que conhecido.
Ao sairmos do cinema, já havia um carnaval na rua, em comemoração ao bicampeonato do Brasil.
A lição de vida mais marcante que aprendi na adolescência, aconteceu pouco mais de um ano depois.
Meu pai havia trabalhado por alguns anos numa importadora de “secos e molhados”.
As mercadorias vinham de navio e era fatal que, durante a viagem, algumas peças se quebrassem.
Periodicamente o proprietário vendia os jogos desfalcados aos empregados, a preços bem reduzidos.
Dessa forma, minha mãe possuía lindos pratos de porcelana inglesa, copos e cálices de cristal da Boêmia, que nunca usava, pois estavam sempre guardados para ocasiões especiais.
Quando ela morreu, meu pai pendurou um armário na parede da casa de minha avó, onde fomos morar, e nele colocou todas essas louças, que eram minha herança.
Mal ele havia posto a última peça, o armário veio abaixo.
Nada restou inteiro!
Talvez seja essa a razão pela qual uso diariamente meus melhores utensílios e jamais deixo para depois a estreia de um novo sapato ou roupa.
Aprendi a duras penas que todos os dias são especiais, basta estarmos vivos e dispostos a festejar a beleza de cada um.













segunda-feira, 26 de março de 2012

NÃO DÁ PRA DEIXAR PASSAR- por Rita Figueiredo



Em nosso papel de consumidores, usuários e clientes, o que a gente faz quando se depara com situações inaceitáveis, como descobrir que adquiriu um produto com defeito ou impróprio para consumo? E quando se é mal atendido? E quando não se é atendido? E quando se descobre que as coisas não funcionam devido a puro descaso ou irresponsabilidade? E quando a gente se sente desrespeitada ou ameaçada? O que a gente faz?
É claro que existe o Procon, e ele funciona, mas nem sempre a gente quer se incomodar com a burocracia e o tempo de espera. E tem mais: nem sempre se trata de uma questão que o Procon possa resolver. Por exemplo, se o prédio em que moro está em péssimas condições; se a minha Internet não funciona; se o livro recém adquirido está cheio de erros ortográficos; se não concordo com os métodos adotados em um curso; se fui desrespeitada pelo motorista numa viagem de ônibus; se me entregam a pizza errada e se negam a refazê-la; se a atendente da central de meu plano de saúde não consegue achar meu cadastro. Coisas aparentemente pequenas, mas que podem trazer grande transtorno. E o que a gente faz? A gente limita-se a engolir e/ou sair por aí, falando mal.
A gente – essa entidade coletiva, anônima e amorfa que, levada pelos velhos condicionamentos, prefere acomodar-se por trás da maledicência entre dentes, propagada nos portões, nas esquinas, nas filas, nos elevadores, nas mesas do boteco, do trabalho, de casa, da manicure...:
- Menina! Olha só o que me aconteceu no supermercado tal...
- Com você também?! Que coisa! Já fizeram isso comigo no banco tal. A gente é nada para eles. Esse mundo não tem mais jeito mesmo!
Mas tem! Tem jeito sim. Deixar de se esconder atrás de a gente, e agir. Ser agente.
Bem, no meu caso, desde que me conheço por agente, sou respaldada por uma espécie de Procon Interior, sempre pronto a intervir nas tais situações inaceitáveis, em defesa de meus direitos de consumidora, usuária, cliente, de cidadã enfim. Mas para receber tal cobertura é preciso entrar com um processo, ou melhor, entrar num processo.
A coisa se desencadeia a partir de um exacerbado e inato senso de justiça, o qual se alvoroça toda vez que me vejo submetida a algo inadmissível, na condição de consumidora, usuária, cliente, cidadã. E vem a reação, em forma de indignação. Indignação: a mola propulsora. Uma adrenalina que fica instigando: você-tem-que-fazer-alguma-coisa, até que eu me mova. Perigoso substrato egóico que muitas vezes me induziu a tornar a raiva combustível, tanto para uma ruidosa explosão (raramente eficaz na solução dos problemas) quanto para uma calada auto-implosão (reconhecidamente nefasta e insalubre). Eu já tinha, portanto, experiência de sobra para me convencer de que bater boca, xingar, espernear, cara a cara, era um tiro que saía pela culatra, quase sempre me tornando vilã da história. Por outro lado, deixar passar sem falar nada me fazia sentir traidora de meus próprios direitos.
Então, como fazer alguma coisa? Foi preciso perder muita estribeira, passar muita vergonha, amargar muito desaforo, até descobrir que havia um jeito mais apropriado de atender ao clamor da indignação: o silêncio. Experimentei substituir a reação imediata (quase sempre distorcida por causa do desequilíbrio emocional) pelo silêncio. A princípio, o ego não se conformava em calar a boca.
Mas esse apenas era o primeiro passo: silenciar, levar o desaforo para casa e somente a partir daí fazer alguma coisa, sempre em silêncio. A etapa seguinte exigia que a resposta, tendo abdicado do alarde proclamado na ponta da língua, passasse a se expressar por intermédio da ponta dos dedos, buscando o inegável impacto da silenciosa palavra escrita.
Em tempos passados, eu pegava a caneta e/ou a máquina de escrever. Hoje, sento ao computador e faço alguma coisa, através de cartas, e-mails, mensagens em sites, sacs, escolhendo criteriosa e criativamente a melhor maneira, tanto de expressar sentimentos como de chamar à responsabilidade quem é de dever. Em alguns casos, esse quem já foi previamente pesquisado, de forma que minha mensagem chegue a alguém em posição de comando, que é minuciosamente colocado a par da situação e cujos brios são sensibilizados, no sentido de levá-lo a tomar as devidas providências na solução do problema ali apresentado.
Na grande maioria dos retornos que recebo, seja de empresas, instituições ou profissionais autônomos, vem demonstrada a importância que é dada a reclamações e solicitações como ferramentas valiosas para a melhoria na qualidade dos produtos, serviços e atendimentos. Ainda bem, porque isso ajuda a abrandar minhas dúvidas quanto a se o tal Procon Interior não seria mais uma manifestação do ego, aquele que provocava as antigas explosões e implosões, quiçá agora abrigado sob um sofisticado disfarce... (Já teve “a gente” que ironizou, dizendo que fico louquinha que algo dê errado, só para eu poder lascar minha carta de reclamação...)
Eu cá comigo parei de questionar a origem das razões subjetivas que me levam a fazer valer meus direitos. Comecei a achar engraçado o jeitão, elaborado no verbo, que encontrei para manifestar indignação, chamando na chincha quem não trata o cidadão com o merecido respeito. Meus motivos são individuais, mas pelo estremecimento causado na maioria de meus destinatários, o resultado acaba certamente beneficiando também o coletivo.
Pelo sim pelo não, você que me lê tire suas próprias conclusões. Quem sabe esteja precisando purgar alguma zanga que lhe rói por dentro, devido a produtos com defeito ou impróprios, maus tratos, mau atendimento, desrespeito ou descaso em sua condição de consumidor, usuário, cliente, cidadão. Tomara que se inspire a igualmente fazer bom uso de sua indignação através da poderosa palavra escrita, saindo dessa posição de “a gente”, para se tornar mais um agente a criar seu próprio Procon Interior, pois do jeito que a coisa anda por aí, NÃO DÁ PRA DEIXAR PASSAR.

Importante: O texto acima é a Introdução do livro com o mesmo nome.
Foi atendendo a inúmeros pedidos que resolvi organizar uma coletânea contendo todas as reclamações e reivindicações que, durante anos, tenho feito a empresas, lojas, bancos, cartões de crédito, planos de saúde, repartições públicas, escolas, editoras, profissionais de toda espécie, etc., a maioria seguida dos respectivos retornos portadores de soluções, ressarcimentos, retratações. No entanto, sou consciente de que este livro jamais poderá ser publicado. Considerando as presumíveis implicações legais que a exposição dos envolvidos certamente acarretaria para a autora, a obra está fadada a ficar circunscrita a seu formato original, cuja leitura deverá se restringir ao âmbito de familiares e amigos.

sexta-feira, 23 de março de 2012

HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO-PARTE I- MÔNICA-Por Regina Pompeu


Meus amigos me chamam de Poliana por me considerarem otimista demais.
Tenho um fraco por histórias com final feliz.
Não me lembro de quem disse que no fim tudo acaba bem, e, se não está bem é porque ainda não acabou; mas concordo plenamente.
As histórias de superação são as que mais me comovem.
Vou começar pela mais recente:
MÔNICA
Quando assistimos pela TV aos relatos de abusos de meninas por seus próprios pais, nos parece obra de ficção. Estamos tão distantes que nos comovemos superficialmente, como se estivéssemos vendo um filme.
No entanto, ao nos depararmos com pessoas de carne e osso, a coisa muda de figura.
Foi o que me aconteceu quando conheci Mônica.
Eu e meu marido passeávamos pelas ruas de Jericoacoara. Acabávamos de chegar quando fomos abordados por uma mulher simpática que nos oferecia passeios. Era tão entusiasmada em sua demonstração que resolvemos comprar dela, apesar de termos tido contato anterior com o pessoal gentilíssimo da agência que nos havia levado de Parnaíba para lá.
Apenas para ter assunto, perguntei há quanto tempo estava na cidade (pois lá se tem a impressão de que todos os habitantes vieram de algum outro lugar do mundo).
Para minha surpresa, ela começou a contar sua história, com os olhos marejados e a voz embargada:
Nascida e criada em Fortaleza, sempre sonhou em morar em Jeri, onde passava férias desde criança, na casa de colegas que iam estudar na capital porque na cidade não havia escolas.
Seu pai a violentava sistematicamente, mas sua mãe não acreditava.
Acabou saindo de casa, teve três filhos ( duas meninas) com um homem que a traiu engravidando uma adolescente.
Sem ter para onde ir, voltou à casa dos pais, onde seu pai violentou também suas filhas.
Para se verem livres da situação, ambas casaram muito cedo; Mônica rompeu definitivamente com seus pais e mudou para Jeri há seis anos.
Começou morando numa pequena barraca debaixo de uma árvore.
Trabalhava fazendo bicos em restaurantes e agências de turismo quando conheceu Carlos, um argentino que chegou à cidade para ficar quinze dias e está lá há cinco anos.
Quando ele perguntava onde ela morava, sua resposta era:
_ Lá...
Quando, enfim, resolveu levá-lo para a barraca, (que já era um pouco maior, pois a primeira havia rasgado), ele não coube e saiu muito bravo.
Alguns dias depois, o dono de um hotel para quem ela trabalhava ofereceu para lhe alugar um apartamento.
Feliz da vida, ela chegou ao restaurante onde Carlos estava cantando e simplesmente chacoalhou a chave em sua direção.
Estão juntos até hoje.
Ele continua cantando na noite e durante o dia vende passeios na mesma agência.
A relação não é fácil, mas ele conhece e compreende seus problemas.
Pedi a ela autorização para escrever sua história e ela prontamente aceitou, dizendo que sempre quis que isso acontecesse. Deu seu telefone e disse que iria me encontrar para contar mais detalhes.
Telefonei no dia seguinte, mas ela não apareceu.
Havia passado o momento e, creio, mesmo superada, revolver essa história dói demais.

domingo, 18 de março de 2012

MEUS AMORES DA FEIRINHA- por Rita Figueiredo


De longe, ele conhece meu carro, vê o sinal de luz e decodifica a pergunta: Onde? A corridinha, os braços em ‘L’ apontam em resposta: Aqui! Ele retira a garrafa pet com água até a metade, usada à guisa de cone para garantir minha vaga na Rua Treze de Maio, segura o trânsito e me ajuda a estacionar. Os comentários de sempre sobre o tempo, sobre a hora em que cheguei, o movimento do dia, o noticiário da noite, sobre o colorido de minha roupa... É o guardião Gilmar, gentil e infalível recepcionista para meu costumeiro passeio de domingo.

E lá vou eu me embrenhar na alegria, no calor e na muvuca organizada da Feirinha de Artesanato do Largo da Ordem. Denominação que minha neta, Marina, rejeita veemente: Esta aqui não é uma feirinha, é uma feirona, vóia! E a menina tem razão, pois já não cabe o diminutivo para esse antigo evento domingueiro que hoje caminha, com suas mil e tantas barracas, para cada vez mais distante do largo que lhe dá o nome. Mas para nós, curitibanos, será sempre Feirinha, não pelo tamanho e sim pelo carinho.

Caixas de fósforo, palitos de dente, latas de sardinha... Tem que ser pequeno para se tornar grande nas mãos e na imaginação daquele sábio de cabelos grisalhos e desgrenhados, eventualmente cobertos por um boné pra lá de surrealista. Minha primeira parada na Feirinha: Bom dia, Hélio Leite! O artesão minimalista retribui o cumprimento com um sorriso moleque, e já vai colando o adesivo do botão do dia em minha roupa. Fico ali um tempo, compondo a platéia de outros boquiabertos a ouvir-lhe as fantásticas histórias sobre o significado de cada uma das peças. Com humor e profundidade, elas nos ensinam a descobrir o perfeito equilíbrio entre o sagrado e o profano. A louca criação, ajuizada alternativa escolhida pelo ser, para não acabar no Pinel. Estou quase saindo, quando chega o João Bello, com seu violão. O Semeador de Sonhos encontra ali ambiente propício pra dar sua canja. Ô, coisa boa!

E a Tamara? Onde andará? Todo domingo, eu olhava aquele vazio, primeiro deixado por ela, e depois pela própria barraca. Quantas túnicas indianas da melhor qualidade comprei ali. E as saionas bordadas. As conversas sobre os chakras, a aura, a energia vital. Afora as muitas risadas em nossos papos de mulher. Já faz uma data que ela sumiu. Cadê a Tamara? Êpa!! Olha ela lá, dentro da sua barraca!!! Foi agora, neste domingo. Tamaaara!!!! Nosso abraço emocionado, compartilhado pelo esvoaçar das roupas penduradas, e testemunhado pelo olhar risonho de seu filho Junior ao fundo. Ela explica: A barraca voltou, mas eu não. Estou só de passagem, por motivo de saúde, nada grave. E me conta que está morando em Santa Helena, lá no sudoeste do Paraná, fazendo seu trabalho de terapeuta. Parou com a confecção. Agora só revende. O Junior ficou, cuidando dos negócios. Hora boa de relembrar, matar a saudade, rir como nos velhos tempos. Ô, Tamara, volta a criar, que teu organismo se re-equilibra... e a Feirinha agradece.

Atravesso o corredor de gente, entro por uma antiga porta, subo os três degrauzinhos e já sou anunciada pelo sino-do-vento, enquanto respiro fundo para mergulhar na vibração emanada pelo reino encantado da loja Gepetto. A dupla de mestres de cerimônia se adianta com sua costumeira saudação, elegante e amiga. Você está linda hoje!!. Não é um simples elogio. Meu ser reconhece e desfruta do mágico poder que aquelas palavras têm de ajudar a volatilizar qualquer resquício do estresse da semana. Todo santo domingo, eu literalmente peço: Sua bênção, Gilson e Gilberto! Eles riem, cada um a seu modo, sei lá se tendo alguma consciência do efeito que sua energia provoca em meu ser. Ali fico à vontade pra liberar a louca em mim, muitas vezes me transformando numa verdadeira drag-queen, a imitar os trejeitos do casal de gays, para lhes retribuir um pouco do bem que eles me fazem. A conversa se alterna de nível entre um e outro: com o Gilberto, ela voa solta pelas transcendências da vida; com o Gilson, ela se mantém na graça, às vezes no escracho, do dia-a-dia. Quase não dá para papear com os dois juntos, não pelo desnível, mas por causa do movimento da freguesia, mesmo com o trabalho dedicado e sorridente da antiga funcionária Sueli.

Ao retornar à rua, sigo o meu nariz. Hmmm... Paro em frente à barraca perfumada, rodeada de outros narizes curiosos cheirando, vareta por vareta, e espero paciente a minha vez. Não dá pra ter pressa na Feirinha. Aliás, a gente nem quer ter pressa mesmo. Bom dia, moça do Sândalo! Hoje ele está especial! Essência importada! Quantos dessa vez? É o Tadeu, agitado atrás do balcão, simplório, como se não fosse ele o criador, o grande mago do incenso. Todo domingo tem novidade. Vai, leva esse pra experimentar. É um purificador de energia. Depois ‘cê me diz o que achou. Ali na retaguarda, sua incansável ajudante, a mãe Filó. Ele desvia o olhar para ela, enquanto aponta o polegar maroto em minha direção: Essa daí tem um faro!

Cê tem visto a Antara? A xamã Antara não para, anda pelo mundo, cada tempo num lugar, cada lugar num tempo, vai ver que até adivinhando ser assunto dos papos entre seus velhos amigos: eu e o Luís – o mestre garapeiro. E ali mesmo, ao pé da sarjeta, no canto da Praça do Relógio das Flores, ao som Carinhoso do antigo Regional, o ar temperado pelo cheirinho dos tacos mexicanos da vizinha Helena, nós dois mergulhamos nas reflexões sobre mudanças cósmicas, aceleração dos tempos, sacralidade do humor, a importância do Presente... O movimento do entorno e do Interno cria o contexto favorável à bendita união do prosaico com o profundo. Não é à toa que o Luís tem aquela cara de Jesus Cristo do Woodstck... E, como se não bastasse, ainda conta com Maria, sua fiel colaboradora. Na maior boa vontade, ela lava a moenda a fim de me preparar a garapa, sempre pura, só com gelo. Oh Maria, mais doce que a cana, muito grata por seu sorriso e também pelo chorinho... do caldo.

E por falar em Maria, minha próxima parada é a barraca de uma devota filha da Senhora da Conceição. É a Lilian, tecelã da arte colorida, toda feita NoTear, nome de sua santa grife. Bom dia, minha flor! Ela emerge em meio a xales e cachecóis, olhos humildes, cabelos longos e prateados, sorriso meigo, voz mansa. No abraço, me sinto como que acolhida pela versão atualizada da Virgem... E ali ficamos, duas irmãs por parte da Grande Mãe, confidenciando nossas mágicas experiências femininas. Ela, mais para fada; eu, mais para bruxa... Tudo quase sempre termina com a compra de mais um xale, modelo multiuso, para mim ou para presente. Na hora de pagar, ela gentilmente oferece desconto, esquecendo que não costumo pechinchar preço a nenhum artesão, pelo imenso valor que dou a seu precioso trabalho.

Há alguns anos, era só atravessar o corredor, mais dois ou três passos, e eu já chegava à barraca do Messala. Mas ele é outro que sumiu. Faz tempo que a vaga está ocupada por novo artesão. Lembro-me de seu ser iluminado e iluminante, expresso no verde do olhar risonho e nas estampas de suas criações: vestes pintadas à mão com motivos indianos e figuras de elementais. Quantas vezes estivemos refletindo sobre as tradições espirituais, do Ocidente ao Oriente... Da Índia ao Índio - nome dado ao evento que ele promoveu lá na Reserva do Cambuí. O encanto da sagrada mistura: a indiarada rodeada de incenso, entoando Mantras; os sanyasis tocando chocalho ao redor da fogueira. Até que, neste belo domingo, eis que fui lá pra cima, conhecer mais uma extensão da Feirona, na rua Kellers. Nossa! Tá vindo até aqui! E já tem três corredores de barracas! Êta Messala!! O zóião ainda mais verde, em contraste com o super-bronzeado da pele. Ele sai da nova barraca e diz que voltou recentemente. Conta animado, e com detalhes, sobre os anos em que esteve a navegar pelos mares do sul e do norte, exercendo função de piloto e maitre, em iate de bacana. Uma experiência e tanto! Bem-vindo, artesão Messala, de volta à terra, nem tão firme assim, de nossa Feirinha!

Odeio shoppings! Não vejo graça nos produtos; acho tudo caro; uma estranha dor nas costas me acomete sempre que ando por ali. E aquele ar condicionado que nos faz sentir frio no verão e calor no inverno! Shopping, só para ir ao cinema, para comprar livros ou presentear algum jovem da família que curte grife. Afora isso, saio de lá sempre de mãos vazias. Mas... me bota na feira de artesanato pra ver. Meu espírito consumista se alvoroça inteiro! Comprar vira uma festa. Meu apartamento é quase uma exposição de artesanato. Ando me contendo pra não levar tudo o que gosto. Hoje em dia, estou mais atraída pelas roupas, para mim ou para presente. Além daquelas anteriormente mencionadas, tenho um monte de peças da Roupa Rara, primorosamente confeccionada no tear da Darci. Outras tantas, originais e exclusivas, fabricadas pela Milho Guerreiro, sob a bênção guarani de Avati, e sedutoramente comercializadas pela Tânia. Delícia de amor, esse entre barraqueiras e freguesa!

E lá vou eu, já carregada de sacolas, comendo bala de coco artesanal, uma atrás da outra, alternando com bolacha de queijo artesanal, pra cortar o doce. Na subida em direção à praça das ruínas, paro pra ouvir o canto inspirado, gritado pelo compositor Plá. Sem interromper sua apresentação, ele me faz um significativo aceno com a cabeça. Logo depois, cruzo com o amigo Batista de Pilar, vestindo sua poesia estampada na camiseta e seu chapéu à moda de senhor de respeito que já foi candidato a vereador. A emoção de lembrar que esses caras encontraram saída no beco da rua da amargura... Aliás, a Feirinha abre seus corredores para acolher todo tipo de gente diferente que, em vez de querer se livrar da loucura, sabiamente descobriu um jeito de expressá-la através da arte, curando o seu ser. Aqui e ali, nos deparamos com músicos, cantores, poetas, atores, palhaços, dançarinos, tudo artista da melhor qualidade, mas tudo fora do normal, a se deixar levar pelo natural...

E o meu passeio de domingo vai chegando ao fim. Um Gran Finale... De longe, os olhos buscam a figura verde-amarela do boneco Anarqino, pendurado no mastro, marcando território, exibiiido, igualzinho a seu pai, como que bradando: “É aqui mesmo!”. Os demais que me perdoem, mas em que pese o sangue, a convivência, o acompanhamento da história, a corujice, estou indo ao encontro do maior de todos os meus amores da Feirinha! Mas antes, há que passar por um pequeno ritual: Buenos dias, Juanca! E me deixo inundar pela energia benéfica do amigo chileno que, com muito talento, dá no couro brasileiro com suas bolsas, carteiras, porta-níqueis. Depois, vem o corredor de baús mágicos: Com sua licença, Sérgio! A figura bonachona do artesão já vai contando a piada do dia, enquanto me abre o caminho de acesso à única barraca que entro por trás: a da AgendArte. O criador, meu irmão caçula Gerson, está ali de costas, degustando sua costumeira tapioca, o café da manhã que não deu tempo de tomar, por causa da correria de arrumar a barraca na hora exigida. Bom dia, meu Santo! Ao reconhecer minha voz, pronunciando o apelido que lhe dei desde pequeno, ele se vira e me presenteia com seu sorriso solar e seu abraço gostoso: E aí, guria?! Enfia a mão embaixo do balcão, pega seu megafone colorido pra anunciar a chegada da escritora Rita Figueiredo aos quatro ventos! Não dá a mínima pra meu olhar meio constrangido e já vai tratando de me trazer um exemplar da agenda recém publicada, a fim de me mostrar uma coisa interessante... Aliás, coisa interessante é o que não falta na AgendArte, cujo traço peculiar é o de ser duas: uma que por si mesma diverte e encanta o leitor; e a outra que emerge surpreendente à medida que o Gerson vai nos traduzindo os detalhes dos textos e das ilustrações... Coloco minhas sacolas de compra no muro que faz fronteira entre a barraca e a Praça das Ruínas, e ali me sento. Meus pés doem, pelas mais de duas horas de caminhada por aquelas ruas de paralelepípedos. O eficiente anjo Gabriel, com seus longos cabelos dourados, deixa a freguesia um pouco e vem me dar um beijo, enquanto pede ao amigo-patrão que lhe libere para ir tomar lanche. O Gerson assume o posto: O preço da Agenda é 24,99. O troco está aqui atrás! E se diverte com a reação das pessoas ao se depararem com a moeda de 1 centavo, marotamente impressa na contracapa. Fico observando aquele cara de cabelos grisalhos, rareando no cocuruto, calças largas, camiseta colorida, nariz de palhaço, enquanto a memória me remete a anos atrás. Engenheiro civil, de terno e gravata, alto funcionário do antigo BNH, casamento certinho, assim era meu irmão, típico bom moço curitibano, normal. Era essa a sua loucura, que acabou por levá-lo ao fundo do poço, útero necessário para a transformação. Tive o privilégio de testemunhar e auxiliar seu renascimento, tornando-o mais um cidadão do universo natural da arte, registrado com o nome de Anarqio Burgueis do Pau-Brasil – o Naqinho, primeiro personagem condutor da AgendArte. Bah! Isso já vai pra mais de 18 anos! De repente, minhas divagações são interrompidas pela visão luminosa e colorida de um trio surgido na frente da barraca. As três mulheres do Gerson: a grande, a média e a pequena, como ele mesmo costuma dizer. Quem primeiro se manifesta, e com barulho, é a pequena Luiza, bisquizinho serelepe, que honra o signo ariano com seu entusiasmo e seu jeito de mandoninha. Logo ao lado, brilha Alice, a média, não só pelo tamanho, mas pelo equilíbrio de seu ser, os olhos doces e cintilantes da artista nata, atriz de teatro. Perguntem para o Gerson por que suas filhas me tratam de vóinha... Às vezes, tenho de lidar com uma certa culpa de não dedicar mais tempo a conviver com essas meninas adoráveis... E aí vem a grande mãe, linda Simone, com sua risada gostosa, sensível co-criadora, parceiraça, profunda conhecedora tanto dos anseios do Gerson como dos intrincados recursos informáticos, ambos necessários para dar continuidade ao sonho da AgendArte. Ela me saúda: Oi, Cu! E eu respondo à altura: Oi, Cu! Foi assim que nós duas resolvemos desmentir o dito popular que afirma: Se cunhada fosse bom, não começaria com ‘cu’. E lá se vão as três dar uma volta e comer alguma coisa. Meu estômago reage à ideia... Vou indo. Tchau, Santo! Boas vendas! E a sua resposta de sempre: Já??, seguida do beijo estalado. Lindinho.

No caminho, ainda dou uma passada na Praça da Ruínas pra assistir o mestre Quincas e seu animado grupo de Capoeira. Ele sai da roda e hesita antes de me dar um abraço: Tô suado!  Eu me aproximo: Vem cá. Abençoado suor...

Ao chegar em casa, tomo consciência do bem que estou me sentindo. O coração pleno de gratidão aos Meus Amores da Feirinha, todos a expressar arte na vida, e vida na arte, apenas sendo o que são, naturalmente...

Curitiba, Primavera de 2010

segunda-feira, 12 de março de 2012

CAUSAS E CAUSOS DE UMA NADADORA MASTER- Por Rita Figueiredo

 No dia em que completei quarenta anos, parei em frente ao espelho e refleti por alguns instantes sobre o significado de já ter chegado à maturidade. A estabilidade da vida, os filhos criados... Qualquer um que observasse ia ter a nítida impressão de que tudo estava na mais perfeita ordem. Só que aqui dentro ainda ardia uma chama bem acesa, energia armazenada, rogando para ser vivida, aproveitada...
“Ando meio estagnada – concluí com certa tristeza. – Gostaria de fazer alguma coisa empolgante. Mas o quê?”
“Nada.” – foi a dura resposta que ouvi, como que me sentenciando. Baixei a cabeça para evitar a imagem no espelho de meus olhos marejados em lágrimas.
“Nada.” – A fria palavra concretizou-se em meus lábios e escorregou para o fundo de mim. Silêncio. De repente, ela retornou à consciência, como um eco, duplicada em volume e carregada de entusiasmo.
“NADA!” – Sentir alegria por não fazer nada poderia ser apropriado para uma pessoa acomodada. Nem de longe combinava comigo, que sempre fui uma mulher tão ativa. Que estranho! Seria já alguma manifestação da idade? Achei melhor deixar pra lá. Afinal, todo mundo tem seu minuto de insensatez...
Passados alguns dias, convidei uma amiga para almoçarmos fora. Ela disse que não podia ir, pois naquele horário fazia aula de natação. Fiquei surpresa:
“Não diga! E onde é que você nada?”
Antes que ela respondesse, veio a reação explosiva de quem matou a charada: “NADA! Agora entendi! Vou com você!”.
Quem não entendeu foi minha amiga ao me ver chegar à academia e já ir parando na secretaria a fim de me matricular numa turma de natação para principiantes.
Dali pra frente, a energia contida passou a ser entusiasticamente utilizada. Quanto mais eu praticava, mais reconhecia a importância deste que é considerado o esporte completo.
Depois de três anos, eu já havia colhido alguns frutos deste meu prazeroso empenho. Melhorei minha resistência; aumentei minha capacidade respiratória e circulatória; fortaleci meus músculos; alonguei meu corpo. Tudo isso sem falar nos benefícios de ordem energética, proporcionados pelo frequente contato com o elemento água, bem como os de ordem psicológica: com o corpo mais saudável, as endorfinas ativadas e, principalmente, a auto-superação, passei a gostar muito mais de mim.
Graças à dedicação de levar a sério os preciosos ensinamentos que recebi, um dia fui considerada apta a competir em um festival interno da academia. Fiquei apreensiva. Jamais havia participado de nenhum campeonato de qualquer que fosse a modalidade esportiva, naqueles 43 anos de existência! Quem diria?!
Assim foi que, em 28 de junho de 1989, ganhei a primeira medalha de toda minha vida. Não tinha nem daquelas de Honra ao Mérito que quase todo mundo recebia em meu tempo de criança. Eu havia vencido uma modesta prova de 25m crawl. Acho graça em lembrar que fiquei tão feliz que fui direto à casa de minha mãe contar-lhe de minha façanha, como uma adolescente.
De lá para cá, tenho sido crescentemente incentivada por professores, marido e filhos a participar de outros campeonatos. Além dos internos da Academia, vieram também os municipais, os estaduais, os regionais e os nacionais. Acabei por tornar-me uma atleta, nadadora master, que hoje tem a prateleira forrada de medalhas. Às vezes, me ponho a olhar tudo aquilo, mal acreditando que fui eu...
No entanto, a maior alegria não são exatamente as medalhas que me proporcionam. Qualquer nadador master sabe muito bem do que estou falando. Existem certas peculiaridades que distinguem nossas competições daquelas realizadas para jovens. Os campeonatos masters são, acima de tudo, verdadeiras festas. No lugar do arrebatamento competitivo típico da juventude, ali predomina a madura sabedoria do legítimo espírito esportivo. Para nós, o dito: “O importante não é vencer, é participar” vai muito além de ser um mero clichê, pois às vezes perder torna-se igualmente importante. É comum se ver o último colocado de uma prova ser mais aplaudido do que o primeiro. Chegou!
Cada nadador master é um exemplo, às vezes para os mais jovens, outras para os mais velhos. Quando vejo alguém como a Maria Lenk, com seus 75 anos, campeã mundial, dissipa-se aqui dentro a preocupação com minha velhice. Também tenho meus ídolos entre os mais jovens, alguns com idade para serem meus filhos. Durante as competições, observo atentamente sua técnica, seu estilo e agradeço pelas dicas que deles recebo. Da mesma forma, sinto-me gratificada quando outras nadadoras me tomam como exemplo.
Portanto, em nossos campeonatos, é possível se ver o filho, o pai, o avô, todo mundo junto, numa gostosa descontração. Diálogos inusitados, volta e meia, são ouvidos nos vestiários. Como este, entre a garotinha do lado de fora do chuveiro, com a toalha na mão, à espera da avó-atleta que acaba de cumprir sua última prova. – “Quantas medalhas, vó?”. – “Cinco de ouro!” – responde aquela senhora, ainda meio incrédula com seu próprio desempenho, e se perguntando em silêncio se ela e a neta não estariam em posições trocadas...
A glória não sobe à cabeça do atleta maduro. A derrota não é motivo para vergonha. A aparência também já não o preocupa. Lá estão à mostra as barriguinhas, os pneuzinhos, as ruguinhas evidentes nas caras lavadas, os cabelos brancos, as calvícies... Nada mais nos constrange. A idade não pesa. Aliás, não é “idade” que se diz. É categoria! – “Qual a sua categoria?”. E a gente responde: “40+ ; 45+ ; 50+ ; 70+”. E todo mundo fica empolgado, logo que passa para a próxima categoria, pois ali chega como o mais novo e, por conseguinte, com mais chance obter bons resultados.
Entre as melhores coisas que se desfrutam nos grupos de natação master estão as viagens. É ônibus lotado pra cá, avião pra lá... Tantas cidades que só assim eu pude conhecer. Junto vão os “perus” (maridos, mulheres, filhos, amigos de nadadores, apenas acompanhando). A cantoria. A bagunça. Todo mundo dando asas a seu lado criança, tão esquecido neste mundo cada vez mais sério, assoberbado e preconceituoso. Além dos companheiros de equipe, com quem se viaja junto, se torce junto, se festeja junto, e de cada novo amigo que se faz, existem aquelas pessoas queridas, algumas provenientes de lugares distantes, que a gente só vê por ocasião dos grandes campeonatos. A cada reencontro, uma celebração.
Programa é o que não falta, o ano inteiro. São churrascos, feijoadas, jantares, rodinhas de samba, bailes. Sem frescura. Sem senhoras e senhores. Todos atletas, tratando-se de você, não importa a idade. Vale sempre a categoria. O traje é rigorosamente esportivo, pra homens e mulheres. O que conta mesmo é a piada. O espírito é o da descontração. A filosofia, a do curtir-a-vida-a-valer! Amigo. Amiga. Não importa se é nosso maior adversário nas competições, porque a maturidade nos ensinou a ver nele, antes de um exímio nadador, um ser humano que, a seu próprio modo, também tem sua história pra contar. Tantos caminhos percorridos, até adotar este verdadeiro estilo de vida, que é ser um nadador master.
                                                                                           Curitiba – Primavera de 1991

(Obs.: Como podem ver, esta crônica foi escrita há mais de 20 anos. Mas, até hoje (2012) aos 66 anos, ainda continuo treinando e participando de campeonatos. E ganhando medalhas!)


sexta-feira, 9 de março de 2012

EXPRESSÃO DIGITAL- Por Rita Figueiredo


                                         (Meu ingresso na era da Informática)
Em pleno Século XXI, você ainda escreve à mão?! À máquina?! - inconformados com o meu primitivismo, cobravam os amigos que conheciam o gosto que tenho pela arte da escrita, ao verem crescer o calo no dedo médio de minha mão direita, ou ao lerem meus textos datilografados.
Arrepiado, meu espírito selvagem reagia a tal insinuação, temendo que ela pudesse acabar me convencendo a fazer uso dessa máquina que ele tinha como maldita, chamada computador, por considerá-la efeito e causa da louca aceleração da mente do homem moderno...
Pense na maravilha que seria - meus amigos insistiam - você se ver livre de rabiscos, setas, corretivos, tesoura, cola, xérox...
Resisti enquanto pude. O meu primeiro livro foi escrito inteirinho à mão, para depois ser datilografado, de forma que pudesse ficar inteligível aos profissionais da editoração.
Pura magia! - era a exclamação de meu espírito selvagem diante das manobras do digitador na época da revisão do referido livro, ao vê-lo substituir, eliminar, transferir, inserir letras, frases, parágrafos, páginas inteiras, modificar o tipo, o tamanho das fontes, e tudo indo se acomodar direitinho, para frente e para trás, obedientemente...
Depois de pronto, admirei aquele trabalho primoroso e pensei cá comigo: Vê lá se tenho capacidade de aprender essa parafernália?!
Meu espírito estremeceu. Como todo bom selvagem, bastou ser provocado para topar o desafio:
“Editor de Texto”, foi o curso que escolhi ao me matricular na escola de Informática. Quem se divertia mesmo era a professora, ora diante de minhas exclamações: Que coisa!; Isso é incrível!; Ele faz isso também?!; Ai, que bonitinho!; ora diante de meus apavoramentos: Corre aqui!; De onde apareceu isto?!; Por que ficou tudo preto?!; Cadê o texto daqui?!; ou diante de minhas impropriedades na utilização da terminologia, as quais ela prontamente corrigia: “Não é bater, é digitar; Não é apagar, é deletar.; Não é escurecer, é marcar; Não é gravar, é salvar”...enquanto voavam as duas horas de aula: acabou?!
- Agora você pode começar a praticar em casa - aconselhou a professora. - Escolha alguns trechos de jornal, revistas ou livros e vá exercitando.
O notebook que ganhara de meu marido como presente de aniversário, ainda estava lá, fechadinho dentro da caixa. Faltava-me a coragem de abri-lo. Sobrava-me o medo de tocar nele e avariá-lo (ou ser avariada por ele...). Até que um dia, meti o bicho numa sacola e levei para que professora me ensinasse a ligá-lo.
Nem bem cheguei em casa, Start, só eu e ele. Ai! O coração selvagem mais acelerado que a mente do homem moderno... Ué?! Cadê aquela barra?
- Alô! Desculpe, professora, de te ligar a esta hora da noite, mas aqui no meu computador está faltando um monte de coisas que aquele lá da escola tem!
- Onde você está?
- Em casa.
- Não!  Em que programa você está no seu PC?
- PC???
- Seu computador!
- Ah... Deixa eu ver. Estou no Word Pad.
- Ele não tem o Microsoft Word instalado?
- O que é isso?
Bem, depois deste, muitos outros diálogos surrealistas se seguiram, todos frutos de meus pedidos de ajuda para as práticas domiciliares, iniciadas com o experimento dos recursos, apenas em frases simples. Além da professora, prontos foram os socorros que recebi de filho, prima, amigos... Ah, os amigos!, os tais “inconformados com o meu primitivismo”, quantas vezes estive a ponto de amaldiçoá-los pela enrascada a que me induziram. Enfrentar as excentricidades deste aparelho, com sua insistente resistência a meu comando, quase me fez acreditar que ele tinha vida própria.
Só depois de alguns meses é que fui atender à sugestão dada pela professora, de selecionar textos para exercitar em casa. Mas não me atraía em nada reproduzir trechos de jornal, revistas ou livros. O espírito selvagem carecia de algo mais motivador...
A pasta! Foi aí que me lembrei da pasta, onde eu costumava arquivar vários escritos de minha autoria, desde a adolescência. Ou seja, todos que consegui guardar, pois muitos se extraviaram, pelas mais variadas causas. Eram mais de setenta, em verso e prosa, distribuídos em cadernos, folhas avulsas, antigas, recentes, manuscritas, datilografadas, de vários formatos, de todos os tempos...
Empolguei-me com a idéia de re-contactar aqueles estimados textos que contavam, cada um a seu modo, um pouco de minha própria história... Exercitar a digitação com eles tornou-se uma tarefa agradável e envolvente. Diverti-me em experimentar os recursos gráficos que a (agora reconhecidamente bendita) máquina me oferecia. Sentia-me orgulhosa em estar aprendendo como escolher fontes, estilos, tamanhos, alinhar, editar, exibir, inserir, formatar, configurar, visualizar, salvar, arquivar, imprimir, etc. Não tinha a menor preocupação em padronizar o trabalho. Muito pelo contrário: quanto mais variada ia ficando a estética dos textos, mais gostosa se tornava a brincadeira.
Simultaneamente ia revivendo cada momento de criação. Um mágico reencontro comigo mesma, nas várias etapas da vida... Ressurgiram emoções, pessoas, fatos que pela vida afora foram catalisadores de minha inspiração. Fui muitas vezes rigorosa ao julgar a qualidade literária de algumas peças, principalmente as mais antigas. Mesmo assim, digitava-as. Depois de impressas, elas adquiriam brilho, aquele próprio de quem vê dignificada a riqueza que traz em seu conteúdo, pelo realce que se deu a seu aspecto formal. Reconheci o dom que, com o passar do tempo, acabei adquirindo de brincar com as palavras, ora através de jogos puramente intelectuais, ora na também pura expressão dos sentimentos e sensações. Revisitei o colorido das criações, com sua alternância de tons: de intimistas a filosóficos; de românticos a bem-humorados.
Com tudo isso, acabei vivendo um duplo processo: o de resgate e revalorização de minha trajetória passada como escritora, e o de ingresso desta escritora na contemporânea era da Informática, para alegria e glória de meus amigos, os “inconformados...”, aos quais acabei por ficar muito grata.
Peguei gosto pela coisa. Fui me tornando craque no domínio do Word. Mas, cada vez que abria o PC, percebia que sua tela me olhava com um ar de estranheza, dando destaque ao ícone do Internet Explorer. Era um sinal de que ele, com seus infinitos recursos de informação e comunicação, sofria a terrível frustração de se ver utilizado apenas como uma máquina de escrever sofisticada. Para mim estava de bom tamanho. Internet, nem pensar! Algo aqui dentro me dizia pra ficar esperta, e manter distância daquela Rede enlouquecida que parecia ter sitiado o planeta. Coisas de espírito selvagem...
Foi um longo processo até eu me convencer de que a tal Rede era portadora de um outro mundo a ser cautelosamente desbravado por mim. Mas isto é uma outra história...