Lembranças são como colchas de retalhos, aparecem sem qualquer tipo de lógica
ou ordem. Simplesmente vão sendo alinhavadas na nossa memória, ou na de quem acompanhou os acontecimentos e,
claro, nunca são o fiel espelho dos fatos, mas a interpretação de quem os
narra.
A
mais remota de que tenho notícia é sobre um programa de rádio.
Contada
pela minha tia, creio que somente as
pessoas bem mais velhas vão achar graça desta história.
Quando tinha três anos, fui levada a um programa da Rádio Record, onde as crianças
tinham que dizer no microfone o nome do patrocinador: ARIGOL.
Fui
a única a conseguir e ganhei cem cruzeiros (acho que era esse o dinheiro da
época).
Quando
o locutor perguntou o que eu faria com o dinheiro, respondi:
_Vou
comprar um tico-tico no fubá!
(
Tico-tico era a marca do triciclo mais cobiçado pelas crianças.)
Como
toda menina, eu tinha muitas bonecas.
Havia
uma que andava, mas sua caixa era colocada sobre o guarda-roupa e eu só podia
brincar com ela em ocasiões muito especiais, sob a severa vigilância de minha
mãe.
Num
dia em que ela se distraiu, cortei todo o cabelo da boneca, certa de que
cresceria novamente.
Eu
as batizava de acordo com a aparência.
A
mais bonita se chamava Clarice, inspirada na sobrinha de nosso dentista.
A
feia, cujo olho eu já havia furado e rabiscado inteirinha, tinha o nome de
Jelembárdia.
Até
hoje não sei de onde tirei esse nome!
Quando
eu era bem pequena, a única diversão das famílias era o cinema, pois eram muito
raras as que possuíam aparelho de televisão.
Quando
o filme era impróprio para crianças, meus pais me deixavam na casa de meus
avós.
Eu
ficava deitada no meio dos dois, e meu avô começava a contar a história da
formiguinha desobediente.
Minha
avó, muito cansada, começava a cochilar.
Nessa
hora, ele piscava para mim e, como parte da história, gritava: FORMIGUINHA,
ONDE VOCÊ ESTÁ???????
Minha
avó acordava assustada e nós ríamos muito.
(Mais
tarde, já na faculdade, eu tinha aulas de segunda a sábado e o domingo era o
único dia em que podia dormir até tarde. Ele vinha bem cedo, me cutucava e
dizia:
_
Nêga, sua avó queria te acordar, mas eu não deixei. Você não acha que fiz bem?
Não vai me agradecer?)
Sempre
fui muito faladeira, qualidade que divertia a família, mas que passou a
preocupar minha mãe quando estava chegando a minha hora de ir para o primeiro ano
primário.
Ela
dizia que não deveria abrir a boca na classe, e recomendou tanto que, após
algumas semanas de aula, a professora a chamou para perguntar se eu era muda,
pois só me comunicava por gestos.
Depois
disso, nunca mais parei de falar.
Quando
o mês de junho estava próximo, a professora organizou a quadrilha.
A
mim coube como par o menino de quem eu gostava.
Muito
tímida, percebi a oportunidade de chegar mais perto, ficar de mãos dadas, etc..
Mas
Ariovaldo, o pior aluno da classe, disse:
_Só
danço se for com a Regina!
Pressionada
pela professora, e pelas mães (minha e do menino), acabei cedendo, mas a
frustração foi imensa e o arrependimento por ter cedido maior ainda.
Embora
já tenham se passado mais de cinquenta anos, toda vez que ouço falar em
chantagem afetiva, esse episódio me vem à lembrança.
Quando
passei para o quarto ano, caí na classe de Dona Eutalia (Lia).
Creio
que ela já estava bastante cansada do magistério e permitia que os alunos quase
derrubassem a classe.
As
carteiras eram duplas e sentávamos em casais.
Os
meninos, em plena idade do Clube do Bolinha, barbarizavam as meninas.
Uma
vez, minha saia pregueada azul marinho se abriu e avançou sobre a metade da
carteira que era do meu parceiro, que não teve dúvida e riscou meu uniforme com
giz branco, demarcando, assim, seu território.
Filha
única de modista, sempre limpa e arrumadinha, cheguei à minha casa aos prantos,
No
dia seguinte, meu pai foi falar com o diretor, que se recusou a me transferir
de classe.
Diante
disso, meu pai ameaçou fazer queixa à sua prima, inspetora de ensino em
Campinas.
No
dia seguinte fui colocada na classe de Dona Zuleika, considerada a melhor
professora da escola.
Foi
ela quem me preparou para o exame de admissão ao ginásio, era ela quem dizia
que algum dia eu seria escritora e foi nesse ano que ganhei a medalha concedida
pelo Governador do Estado ao melhor aluno de cada Grupo Escolar.
Tenho
procurado bastante, pela internet e listas telefônicas, mas ainda não consegui
localizá-la. Se ainda estiver viva, deve ter um pouco mais de oitenta anos.
Outro
fato inesquecível: meu aniversário sem festa.
Nasci
na Páscoa e a data sempre caiu muito próxima da semana santa.
Então,
era a sequência: brigadeiros, bolos, ovos de chocolate (ou vice-versa), dor de
barriga, médico, purgante e lavagens intestinais.
Perto
de completar nove anos, começou a dor de barriga e minha mãe, certa de
tratar-se do mesmo processo, me deu purgante e me aplicou duas lavagens.
No
entanto, a dor não cedia e tive de ir ao médico.
Ao
me examinar, ele disse à minha mãe:
_
Você quase matou sua filha. Procure um cirurgião com a máxima urgência, pois
ela está com apendicite aguda.
Foi
assim que passei meu aniversário no hospital, onde todas as pessoas que
costumavam ir às minhas festas compareceram para me visitar, fazendo um barulho
danado.
Minha
mãe sofria do coração e toda a família temia
lhe causar qualquer dissabor, e
eu não fugia à regra.
Porém,
numa tarde, eu devia ter uns doze anos, voltei
da escola e minha mãe não estava em casa.
Tive
a brilhante idéia de me esconder para lhe dar um susto quando chegasse.
Assim,
eu e a amiguinha que me acompanhava entramos no guarda roupa, mas, como minha
mãe demorou, acabamos adormecendo.
Quando
acordamos, o tumulto estava armado, minha mãe havia refeito todo o caminho da
escola e já estava a ponto de chamar a polícia.
Quase
morta de susto, não sabia se me batia ou me beijava.
Acho
que fez os dois...
(Anos
depois, após brigarmos, meu filho se escondeu atrás de um móvel, deixando uma
carta de despedida sobre a mesa, informando que estava fugindo de casa. Só então pude compreender o que minha mãe havia passado!)
Na
Copa do Mundo do Chile, em 1962, a doença de minha mãe já havia se agravado
muito.
No
dia da final, para que ela não ficasse nervosa, nós e as demais mulheres da
casa fomos ao cinema assistir à Paixão de Cristo.
Na
hora da crucificação, os poucos gatos pingados que estavam no cinema choravam
copiosamente, quando se ouviu um grito:
_
Goooool!!!!
Claro
que era outro torcedor nervoso que, inconformado, havia levado consigo o rádio
de pilha.
Nem
é preciso dizer que, a partir daquele instante, a atenção de todos se voltou
para a transmissão do rádio, deixando de lado o final do filme que, aliás, era
mais que conhecido.
Ao
sairmos do cinema, já havia um carnaval na rua, em comemoração ao bicampeonato
do Brasil.
A
lição de vida mais marcante que aprendi na adolescência, aconteceu pouco mais
de um ano depois.
Meu
pai havia trabalhado por alguns anos numa importadora de “secos e molhados”.
As
mercadorias vinham de navio e era fatal que, durante a viagem, algumas peças se
quebrassem.
Periodicamente
o proprietário vendia os jogos desfalcados aos empregados, a preços bem
reduzidos.
Dessa
forma, minha mãe possuía lindos pratos de porcelana inglesa, copos e cálices de
cristal da Boêmia, que nunca usava, pois estavam sempre guardados para ocasiões
especiais.
Quando
ela morreu, meu pai pendurou um armário na parede da casa de minha avó, onde
fomos morar, e nele colocou todas essas louças, que eram minha herança.
Mal
ele havia posto a última peça, o armário veio abaixo.
Nada
restou inteiro!
Talvez
seja essa a razão pela qual uso diariamente meus melhores utensílios e jamais
deixo para depois a estreia de um novo sapato ou roupa.
Aprendi
a duras penas que todos os dias são especiais, basta estarmos vivos e dispostos
a festejar a beleza de cada um.