Do fundo do mar
projeta-se um raio de ouro. Mais outro. Outro. Tantos, tantos que todo o meu
olhar fica dourado. As palavras voam no ar e são douradas. Uma espuma se
desmancha toda. E é ouro. Ainda ouro. Tanto, mas tanto...
Do fundo do mar vai aparecer alguma coisa.
Agora são sons, doces, bons, redondos, macios.
Aos poucos vai caindo sobre a manhã uma coisa morna.
Os animais se aconchegam nesta coisa-cobertor-encantamento.
No azul aparecem pontas de aço, ou vidro, ou cristal.
Não sei. E a coisa encantamento continua a me envolver. Não dá para abrir os
olhos. Se os abrir, sei que vou me enrolar nesta onda que sobe. Por onde? Ainda
não sei onde estou. Mas a onda sobe e molha as minhas sandálias velhas. As
minhas únicas sandálias. Como voltarei para casa com as minhas sandálias
molhadas? Enxugo-as no velho vestido xadrez que se enrosca na fivela. Que
raiva! Agora estou sentindo muito frio. Minhas sandálias estão molhadas. Meu
vestido xadrez está sujo e rasgado.
A onda agora se escondeu...Não...Fugiu de mim! Desandou
numa corrida danada. Olha lá, está virando a esquina do mar. Vejo só um
rabinho...espuminha branca. Pronto! Acabou! Não tem mais onda! Ah que bom!
Volto a olhar para o mar, para o mar... Umas pontas
duras e espetadas rasgam a água. O que será?
Algumas vezes, noutro tempo, num tempo que não sei mais onde está,
olhava os ciprestes, olhava, olhava e eles furavam também o céu. Então o céu chorava, chorava
muito, chorava dias e noites, e vinha depois uma velhinha-nuvem toda branca e
assoava o nariz do céu que não parava de fungar e fazia um barulho feio, mas
muito feio mesmo que todas as criancinhas corriam para debaixo da mesa da
cozinha a se esconder e a mãe começava a rezar “Santa Bárbara, Luz Divina, Deus
te guie, Santa Bárbara, Luz Divina, Deus te guie” e não parava mais. A gente se
agarrava ao pé da mesa e sonhava com uma fada, não aquela toda enfeitada, de
chapéu comprido e unhas compridas e com uma vara com estrelas na ponta, a gente
sonhava com uma fada fofinha, gordinha, coradinha, de covinha nas bochechas e
olhinhos azuis a nos dizer: “ora veja só, quem tem medo de menino-céu que está
a se assoar...” e a gente olhava para ela e a coisa-morna enrolava o nosso medo
e o levava para bem longe e dizia: “Some-te daqui, deixa a menina dormir seu soninho
sossegada.”
Depois vinham aqueles dias em que tudo ficava
cinzento. Nem uma ponta de céu por perto. Nem gotas azuis caindo das hortênsias.
Ficava tudo parado e triste e morto.
Depois vinham também as notícias dos pescadores duros
de olhos apertados que se debruçavam em cima do oceano e lhe perguntavam coisas
e o oceano nada respondia porque tinha um mistério só seu guardado há muito
séculos. E cada vez que os pescadores olhavam fixamente um ponto branco no
fundo do mar azul, aparecia um bicho enorme que negaceava, negaceava e
arrastava devagarzinho as canoas para bem longe onde os pescadores de olhos
duros e secos acabavam banhando a secura de tantos dias salgados com um banho
morno que escorria pelas encostas das rugas e se escondia nas golas ensebadas
das camisas de ir ao mar.
Ah! Mas havia também um velho alto de barbas
amareladas e cabelos longos que juntava as crianças em cima dos rochedos e lhes
falava de um tempo em que as crianças não precisavam ir à escola, nem buscar
lenha, nem apanhar lapas no calhau nas manhãs de inverno. E as crianças
entravam de mansinho pelo olhar azul do velho Catita e deixavam-se enlouquecer
com ele nessa viagem que tomara não tivesse retorno, mas uma voz esganiçada
emperrava a máquina de sonhar e começava tudo de novo: “sete vez nove, braços
arranhados, pés esfolados”.
Ah! Teria sido bom que aquele entardecer não tivesse
acontecido nunca. Cochichos pela sala, meias palavras, ameaças interrompidas.
Um dia ouvi falar de São Cristovão que levava o Menino
Jesus aos ombros para a casa de Seu Pai. Agora ali estava alguém, podia ser um
homem, podia ser um pai, alguma coisa que servia para carregar um raio de luz,
talvez aquele alguém pudesse ser humano, mas o que havia ali de possibilidade
de esperança não estava presente no olhar vacilante que procurava se esconder
por entre os musgos sorrateiros.
Ah! Teria sido bom que aquele entardecer não tivesse
acontecido. E aquele alguém, que talvez tivesse sido um dia humano e que
estivesse tentando voltar ao ponto inicial, não sabia o que fazer com o raio de
luz. Onde depositar aquele fardo que agora pesava cada vez mais? O que havia de
tragédia no silêncio daquele entardecer só os anjos poderiam adivinhar. Depois,
não me lembro de mais nada. Apenas uma criança-raio-de-luz com a camisinha
branca e muito curtinha e uma noite interminável e muito fria.
Aquela era bem a casa da bruxa malvada. Não sei quanto
tempo ali passei. O que sei é que, naquela noite e em tantas outras, fiquei
cara a cara com alguma coisa que me amedrontava, mas assim mesmo me protegia.
Mais tarde fiquei sabendo que aquilo se chamava...
“se chamava solidão,
dentro dele, dentro dele mora um anjo
que roubou, que roubo meu coração.”
Havia um anjo do outro lado do oceano, escorregando
bem mais para baixo, num reino cheio de luz, cheio de graça. Só que havia um
cabo das tormentas e um mostrengo. Então, o remédio era entrar de novo na
loucura azul do velho Catita, perder-se de novo nesta loucura para não morrer.
De novo aquelas pontas de aço, de vidro ou de cristal
entram por meus olhos.
O mar ainda está por vir, mas em breve aparecerão aves
noturnas a piar em volta dos altos picos. Não sei se alguma coisa feia está
para acontecer. A velha avó falava de aves agourentas dos dias de tempestade,
mas aquelas pareciam fortes, grandes e nenhum medo me envolvia. Apenas um forte
desejo de que me crescessem umas asas, brancas ou não, e que eu as pudesse
bater para evadir-me dali.
Da esquina do mar vinham de novo sons pouco nítidos,
mas doces, bons, redondos e macios. Sempre quis que estes sons se alojassem na
minha vontade de dizer todas as coisas. Então ficava em êxtase, horas e horas,
esperando que aquele universo sonoro me transformasse numa enorme garganta, com
cordas de aço que durassem a vida toda e que pudessem falar de todos os sons,
de todas as palavras, com precisão, doçura e justeza. Não foi fácil. Muitas
vezes o que poderia ter sido inteira melodia saía em golfadas, tudo desentoado,
desarmônico. Então as pontas de aço, de vidro ou de cristal ficavam espetadas
em minha garganta e eu passava eternidades de silêncio. Muda. Endurecida.
Morta.
Quando ouvia os rouxinóis no perdido quintal da minha
avó, remoía-me de raiva, de inveja, de dor. Havia uma coisa muito grande
querendo dizer-se, mas apenas um som mirrado escorria pelo canto da boca,
fazendo todos os dias uma ruga que não parava mais.
Cada dia que passa é mais uma oportunidade de
enfrentar um novo som, um novo caminho, um novo horizonte. Há um corredor
imenso a percorrer. O que está por vir? Como será? Vai dar certo? Bem que eu
gostaria de ficar aqui encolhida, vendo as gaivotas furando as cortinas do
oceano. Mas havia um caminho e um enfado que incomodava os meus dias. Ter que
partir sempre, sempre foi a minha maneira de sentir-me viva. Havia a outra
ilha, houve sempre uma outra ilha, um outro lado, um outro-que-fazer. Precisava
ir.
Tive por cinco anos, precisamente cinco anos, um
himalaia diante dos meus olhos. Quando o sol nascia, quando as brumas envolviam
tudo, quando anoitecia, quando o vapor começava a aparecer lá longe, quando se
ia, quando se vinha. Era a minha ilha-himalaia. Sempre enfeitada com um chapéu
de nuvem.
Quando os dias eram muito frios, a nuvem agarrava-se à
pontada ilha e ficava durinha de frio até que viesse um raiozinho de sol
fazer-lhe cócegas e, logo logo, ela virava de novo chapéu.
De manhã vinham barcos carregados de cachos de uvas
suadas de sol e de sal. Os homens do Pico – era o nome da ilha-himalaia-
descarregavam enormes cestas de frutas e o cais inteiro virava o perfumado
armário onde a velha avó escondia as maçãs para dividir com alguma neta, numas
horas muito especiais de doce cumplicidade.
Agora não sei onde para o cais e começa o armário de
maçãs escondidas. Só sei que há uma saudade abarrotada de cheiros da infância.
A criança que um dia sentiu o perfume de um armário de
maçãs, a abrir-se, carrega consigo uma vontade-gancho-de-alpinista. E um dia
mais tarde, na virada da montanha e quando tudo estiver desmoronando, e quando
continuar subindo for mais calvário que desafio, um braço forte que se chama
memória-saudade, concretizada nos doces cheiros da infância – esse braço forte
será apoio, gancho de alpinista, para deter-se um pouco, só um pouco, apenas o
tempo necessário para um suspiro.
Ah! Minha ilha-himalaia, daqui te vejo, te pressinto,
te revisito. Estou diante de ti. Protege-me, cobre algumas horas, bem poucas
foram, mas tão amargas, tão amargas que estar sozinha foi o mais desesperado
desejo dessas bem poucas horas. Negros corvos rondaram por muitos anos essas
bem poucas horas. Roçaram as asas num raio de luz e fizeram duras sombras.
Quebraram todas as bússolas. Queimaram os remos. Roubaram o vento das velas.
Sujaram as asas brancas que estavam por vir. Pisotearam as violetas escondidas
no canto úmido do jardim.
Foram longos vinte anos de emparedamento. A alma e o
coração de costas e a vida passando azul, dourada, feito alegre sinfonia. O
coração e a alma desfilando...de costas.
Do outro lado do oceano, escorregando bem para baixo,
num reino cheio de luz, cheio de graça, haveria manhãs, tão bonitas manhãs, mas
por enquanto, neste mar de longo, tanta tormenta e tanto dano...
Hora de partir. Cortar as amarras. Recolher a âncora.
Arrebentar as raízes.
O berro surdo do navio estourou os diques represados
dos emigrantes. Tudo acabado. Não mais gotas de hortênsias, não mais olhos
azuis do velho Catita, não mais armário de maçãs da velha avó, não mais
ilha-himalaia.
As sete colinas vão sumindo. Agora são seis e ainda há
lenços no cais. São cinco e o rapaz das serras ainda não conseguiu chorar. São
quatro e todos são estátuas de pedra. São três e o rapaz das serras grita “ó
mãe...” São duas e agora o mar salgado recolhe o lamento úmido dos sem-pátria.
Ultima colina e...o mar.
O mar. Céu e mar durante treze dias.
Numa manhã cravada de tanto azul, os emigrantes
aportaram a um reino cheio de graça, cheio de
luz, onde, naturalmente, muitos encontrariam o seu anjo exterminador de
brumas.
A Geraldo Callefe,
meu insubstituível anjo exterminador de brumas