domingo, 13 de outubro de 2013

EVOLUÇÃO - Por Juliana Callefe



 ( A visão da nova geração)

 

A gente reclama de tantas coisas fúteis, de se julgar até mesmo infantil.
A Vida é realmente incerta. E se não dermos o devido valor a cada segundo àqueles que passam por nós, e pelo que temos ao nosso alcance, o Tempo se dissipa e se torna vazio.
Não penso ser a dona da razão em relação ao significado da Vida, e o porquê de tantas provações, mas também não acredito estar totalmente errada dentro daquilo que acredito, baseado no que vivencio e estudo.
Não pratico tudo aquilo que digo, e tampouco acredito em tudo que ouço.
Não me julgo melhor que ninguém. Apenas sigo meus sentidos. Minhas vontades, verdades.
Dentro de cada escolha, muitos erros. E, apesar das consequências inevitáveis, recebo o aprendizado, o crescimento e a maturidade.
Enxergo a Vida de uma forma diferente. Isto não significa que não mude minha forma de pensar ao longo da Vida. Estamos e somos seres em constante transformação, e adaptáveis às diversas situações.
Apenas me respeito.
Desejar aceitação do outro, sem a própria aceitação, é como lutar contra a própria imagem no espelho. Como podemos exigir do outro aquilo que não enxergamos ou não temos dentro de nós?
A Vida não começa e não está lá fora.
O início do ciclo da Vida começa dentro de cada criatura.
Talvez, quando tivermos esta consciência, e dermos o verdadeiro amor à nossa própria existência e ao que ela representa, o ser humano descubra o verdadeiro valor daqueles que, por algum motivo, desejem caminhar ao nosso lado.
Almejo e exijo pouco da Vida.
O que ser, onde estar, como estar e com quem, não depende dela, e sim da vontade e da força de luta que cada um carrega consigo.
Feliz ou não, a Vida deve seguir!
Não é a previsão do tempo que determina como será o nosso dia. Somos nós! 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

BRUMA - Por Maria Tereza Callefe



Do fundo do mar projeta-se um raio de ouro. Mais outro. Outro. Tantos, tantos que todo o meu olhar fica dourado. As palavras voam no ar e são douradas. Uma espuma se desmancha toda. E é ouro. Ainda ouro. Tanto, mas tanto...

Do fundo do mar vai aparecer alguma coisa.

Agora são sons, doces, bons, redondos, macios.

Aos poucos vai caindo sobre a manhã uma coisa morna. Os animais se aconchegam nesta coisa-cobertor-encantamento.

No azul aparecem pontas de aço, ou vidro, ou cristal. Não sei. E a coisa encantamento continua a me envolver. Não dá para abrir os olhos. Se os abrir, sei que vou me enrolar nesta onda que sobe. Por onde? Ainda não sei onde estou. Mas a onda sobe e molha as minhas sandálias velhas. As minhas únicas sandálias. Como voltarei para casa com as minhas sandálias molhadas? Enxugo-as no velho vestido xadrez que se enrosca na fivela. Que raiva! Agora estou sentindo muito frio. Minhas sandálias estão molhadas. Meu vestido xadrez está sujo e rasgado.

A onda agora se escondeu...Não...Fugiu de mim! Desandou numa corrida danada. Olha lá, está virando a esquina do mar. Vejo só um rabinho...espuminha branca. Pronto! Acabou! Não tem mais onda! Ah que bom!

Volto a olhar para o mar, para o mar... Umas pontas duras e espetadas rasgam a água. O que será?

Algumas vezes, noutro tempo, num tempo que não sei mais onde está, olhava os ciprestes, olhava, olhava e eles furavam  também o céu. Então o céu chorava, chorava muito, chorava dias e noites, e vinha depois uma velhinha-nuvem toda branca e assoava o nariz do céu que não parava de fungar e fazia um barulho feio, mas muito feio mesmo que todas as criancinhas corriam para debaixo da mesa da cozinha a se esconder e a mãe começava a rezar “Santa Bárbara, Luz Divina, Deus te guie, Santa Bárbara, Luz Divina, Deus te guie” e não parava mais. A gente se agarrava ao pé da mesa e sonhava com uma fada, não aquela toda enfeitada, de chapéu comprido e unhas compridas e com uma vara com estrelas na ponta, a gente sonhava com uma fada fofinha, gordinha, coradinha, de covinha nas bochechas e olhinhos azuis a nos dizer: “ora veja só, quem tem medo de menino-céu que está a se assoar...” e a gente olhava para ela e a coisa-morna enrolava o nosso medo e o levava para bem longe e dizia: “Some-te daqui, deixa a menina dormir seu soninho sossegada.”

Depois vinham aqueles dias em que tudo ficava cinzento. Nem uma ponta de céu por perto. Nem gotas azuis caindo das hortênsias. Ficava tudo parado e triste e morto.

Depois vinham também as notícias dos pescadores duros de olhos apertados que se debruçavam em cima do oceano e lhe perguntavam coisas e o oceano nada respondia porque tinha um mistério só seu guardado há muito séculos. E cada vez que os pescadores olhavam fixamente um ponto branco no fundo do mar azul, aparecia um bicho enorme que negaceava, negaceava e arrastava devagarzinho as canoas para bem longe onde os pescadores de olhos duros e secos acabavam banhando a secura de tantos dias salgados com um banho morno que escorria pelas encostas das rugas e se escondia nas golas ensebadas das camisas de ir ao mar.

Ah! Mas havia também um velho alto de barbas amareladas e cabelos longos que juntava as crianças em cima dos rochedos e lhes falava de um tempo em que as crianças não precisavam ir à escola, nem buscar lenha, nem apanhar lapas no calhau nas manhãs de inverno. E as crianças entravam de mansinho pelo olhar azul do velho Catita e deixavam-se enlouquecer com ele nessa viagem que tomara não tivesse retorno, mas uma voz esganiçada emperrava a máquina de sonhar e começava tudo de novo: “sete vez nove, braços arranhados, pés esfolados”.

Ah! Teria sido bom que aquele entardecer não tivesse acontecido nunca. Cochichos pela sala, meias palavras, ameaças interrompidas.

Um dia ouvi falar de São Cristovão que levava o Menino Jesus aos ombros para a casa de Seu Pai. Agora ali estava alguém, podia ser um homem, podia ser um pai, alguma coisa que servia para carregar um raio de luz, talvez aquele alguém pudesse ser humano, mas o que havia ali de possibilidade de esperança não estava presente no olhar vacilante que procurava se esconder por entre os musgos sorrateiros.

Ah! Teria sido bom que aquele entardecer não tivesse acontecido. E aquele alguém, que talvez tivesse sido um dia humano e que estivesse tentando voltar ao ponto inicial, não sabia o que fazer com o raio de luz. Onde depositar aquele fardo que agora pesava cada vez mais? O que havia de tragédia no silêncio daquele entardecer só os anjos poderiam adivinhar. Depois, não me lembro de mais nada. Apenas uma criança-raio-de-luz com a camisinha branca e muito curtinha e uma noite interminável e muito fria.

Aquela era bem a casa da bruxa malvada. Não sei quanto tempo ali passei. O que sei é que, naquela noite e em tantas outras, fiquei cara a cara com alguma coisa que me amedrontava, mas assim mesmo me protegia. Mais tarde fiquei sabendo que aquilo se chamava...

“se chamava solidão,

dentro dele, dentro dele mora um anjo

que roubou, que roubo meu coração.”

Havia um anjo do outro lado do oceano, escorregando bem mais para baixo, num reino cheio de luz, cheio de graça. Só que havia um cabo das tormentas e um mostrengo. Então, o remédio era entrar de novo na loucura azul do velho Catita, perder-se de novo nesta loucura para não morrer.

De novo aquelas pontas de aço, de vidro ou de cristal entram por meus olhos.

O mar ainda está por vir, mas em breve aparecerão aves noturnas a piar em volta dos altos picos. Não sei se alguma coisa feia está para acontecer. A velha avó falava de aves agourentas dos dias de tempestade, mas aquelas pareciam fortes, grandes e nenhum medo me envolvia. Apenas um forte desejo de que me crescessem umas asas, brancas ou não, e que eu as pudesse bater para evadir-me dali.

Da esquina do mar vinham de novo sons pouco nítidos, mas doces, bons, redondos e macios. Sempre quis que estes sons se alojassem na minha vontade de dizer todas as coisas. Então ficava em êxtase, horas e horas, esperando que aquele universo sonoro me transformasse numa enorme garganta, com cordas de aço que durassem a vida toda e que pudessem falar de todos os sons, de todas as palavras, com precisão, doçura e justeza. Não foi fácil. Muitas vezes o que poderia ter sido inteira melodia saía em golfadas, tudo desentoado, desarmônico. Então as pontas de aço, de vidro ou de cristal ficavam espetadas em minha garganta e eu passava eternidades de silêncio. Muda. Endurecida. Morta.

Quando ouvia os rouxinóis no perdido quintal da minha avó, remoía-me de raiva, de inveja, de dor. Havia uma coisa muito grande querendo dizer-se, mas apenas um som mirrado escorria pelo canto da boca, fazendo todos os dias uma ruga que não parava mais.

Cada dia que passa é mais uma oportunidade de enfrentar um novo som, um novo caminho, um novo horizonte. Há um corredor imenso a percorrer. O que está por vir? Como será? Vai dar certo? Bem que eu gostaria de ficar aqui encolhida, vendo as gaivotas furando as cortinas do oceano. Mas havia um caminho e um enfado que incomodava os meus dias. Ter que partir sempre, sempre foi a minha maneira de sentir-me viva. Havia a outra ilha, houve sempre uma outra ilha, um outro lado, um outro-que-fazer. Precisava ir.



Tive por cinco anos, precisamente cinco anos, um himalaia diante dos meus olhos. Quando o sol nascia, quando as brumas envolviam tudo, quando anoitecia, quando o vapor começava a aparecer lá longe, quando se ia, quando se vinha. Era a minha ilha-himalaia. Sempre enfeitada com um chapéu de nuvem.

Quando os dias eram muito frios, a nuvem agarrava-se à pontada ilha e ficava durinha de frio até que viesse um raiozinho de sol fazer-lhe cócegas e, logo logo, ela virava de novo chapéu.

De manhã vinham barcos carregados de cachos de uvas suadas de sol e de sal. Os homens do Pico – era o nome da ilha-himalaia- descarregavam enormes cestas de frutas e o cais inteiro virava o perfumado armário onde a velha avó escondia as maçãs para dividir com alguma neta, numas horas muito especiais de doce cumplicidade.

Agora não sei onde para o cais e começa o armário de maçãs escondidas. Só sei que há uma saudade abarrotada de cheiros da infância.

A criança que um dia sentiu o perfume de um armário de maçãs, a abrir-se, carrega consigo uma vontade-gancho-de-alpinista. E um dia mais tarde, na virada da montanha e quando tudo estiver desmoronando, e quando continuar subindo for mais calvário que desafio, um braço forte que se chama memória-saudade, concretizada nos doces cheiros da infância – esse braço forte será apoio, gancho de alpinista, para deter-se um pouco, só um pouco, apenas o tempo necessário para um suspiro.

Ah! Minha ilha-himalaia, daqui te vejo, te pressinto, te revisito. Estou diante de ti. Protege-me, cobre algumas horas, bem poucas foram, mas tão amargas, tão amargas que estar sozinha foi o mais desesperado desejo dessas bem poucas horas. Negros corvos rondaram por muitos anos essas bem poucas horas. Roçaram as asas num raio de luz e fizeram duras sombras. Quebraram todas as bússolas. Queimaram os remos. Roubaram o vento das velas. Sujaram as asas brancas que estavam por vir. Pisotearam as violetas escondidas no canto úmido do jardim.

Foram longos vinte anos de emparedamento. A alma e o coração de costas e a vida passando azul, dourada, feito alegre sinfonia. O coração e a alma desfilando...de costas.

Do outro lado do oceano, escorregando bem para baixo, num reino cheio de luz, cheio de graça, haveria manhãs, tão bonitas manhãs, mas por enquanto, neste mar de longo, tanta tormenta e tanto dano...

Hora de partir. Cortar as amarras. Recolher a âncora. Arrebentar as raízes.

O berro surdo do navio estourou os diques represados dos emigrantes. Tudo acabado. Não mais gotas de hortênsias, não mais olhos azuis do velho Catita, não mais armário de maçãs da velha avó, não mais ilha-himalaia.

As sete colinas vão sumindo. Agora são seis e ainda há lenços no cais. São cinco e o rapaz das serras ainda não conseguiu chorar. São quatro e todos são estátuas de pedra. São três e o rapaz das serras grita “ó mãe...” São duas e agora o mar salgado recolhe o lamento úmido dos sem-pátria. Ultima colina e...o mar.

O mar. Céu e mar durante treze dias.

Numa manhã cravada de tanto azul, os emigrantes aportaram a um reino cheio de graça, cheio de  luz, onde, naturalmente, muitos encontrariam o seu anjo exterminador de brumas.

A Geraldo Callefe,

meu insubstituível anjo exterminador de brumas