Aposentada, filho criado e
casado; como companhia, apenas o cachorro, velhinho como ela.
Não é mais necessária a corrida
pela sobrevivência: poucos gastos, rendimento suficiente para tocar a vida sem
grandes sobressaltos.
Sempre lidou com pessoas de
poucos recursos e agora não tem predisposição para trabalho voluntário; depois
de uma vida inteira de horários, não quer se sentir presa a compromissos
formais ou informais.
Mas, sente falta de uma atividade
em que possa se sentir útil novamente, “fazer a diferença”.
O inverno chegando, mesmo que na
cidade o frio não seja tão rigoroso, nas madrugadas a temperatura cai bastante.
Por que não fazer agasalhos para
doar?
É uma atividade que lhe agrada
bastante e para a qual nunca sobrou tempo suficiente.
Após muito tempo sem tricotar, o
trabalho não sai tão bom quanto antes.
No primeiro gorro, percebe um
ponto errado, mas contém seu impulso de desmanchar e refazer, afinal, sempre
foi acusada de perfeccionista.
Após muitos dias de trabalho,
termina alguns gorros e cachecóis, e entrega todos ao serviço social para
distribuição.
Não precisa nem quer
agradecimentos, basta a satisfação de fazer o que gosta, sem pressa nem
cobranças.
Só não consegue doar aquele com
ponto errado.
Não desmanchar é uma coisa, doar
algo imperfeito é outra muito diferente.
Resolve colocá-lo no lixo.
Madrugada fria, ouve um barulho
na sala.
Vai verificar e encontra seu cachorro
inerte e ensanguentado no piso frio.
Ergue os olhos e sua última visão
é de alguém vindo em sua direção, usando um gorro, no qual percebe um ponto
errado...