terça-feira, 27 de outubro de 2020

Testamento

TESTAMENTO

Estando de plena posse de minhas faculdades mentais e não tendo bens materiais a distribuir, deixo os seguintes legados:

Ao meu filho, meus cromossomos;

Aos meus amigos, a saudade;

Aos meus inimigos, o alívio;

Àqueles que me amaram, o carinho;

Aos que me odiaram, a indiferença;

Àqueles que me ampararam, a gratidão;

Aos que me negaram o apoio, o desprezo,

À História, a ausência;

E àqueles que um dia me estenderam a mão e me proporcionaram momentos felizes,

                                      OBRIGADA!

 

1980

 

 

sábado, 17 de outubro de 2020

DE VENTO EM VENTO

DE VENTO EM VENTO

 

Era uma vez... 

Uma linda cidade litorânea.

Suas praias eram magníficas; sua vegetação, pujante; as paisagens, de tirar o fôlego.

Uma geografia surpreendente, onde a montanha parecia mergulhar na areia e a floresta se misturava com o mar.

A localização privilegiada facilitava a prática de esportes radicais, como asa delta, parapente, surfe e skate.

Era, também, um lugar de repouso e tranquilidade para os idosos, e perfeito para curtir as férias.

No entanto, como no resto do mundo, as pessoas não respeitavam o meio ambiente.

Jogavam lixo no mar, derrubavam as árvores centenárias, sujavam os rios.

As tartarugas morriam asfixiadas pelos sacos plásticos, os peixes eram envenenados pela poluição da água, animais eram extintos pela caça predatória.

Tanto fizeram que provocaram a ira dos deuses. Estes, em reunião extraordinária, incumbiram Éolo, o Deus dos Ventos, de proceder à merecida punição.

E, repentinamente, sem que ninguém estivesse preparado, começou a soprar o temido vento noroeste.

Veio destruindo tudo, casas, cercas, muros, quiosques.

As árvores se dobravam e as folhas dos coqueiros saíam em voo rasante.

Era perigoso sair às ruas.

O céu escureceu, o dia virou noite.

 Em sua esteira veio também um ser invisível, que fazia as pessoas adoecerem.

Era altamente contagioso e rapidamente a doença se espalhou.

Sem medicamento eficaz nem vacina, as pessoas precisavam ficar em casa para se protegerem, principalmente os velhos e os doentes.

A cidade parou. O mundo inteiro parou!

As escolas suspenderam as aulas.

Os avós não podiam mais ver seus netos.

As famílias deixaram de se reunir no almoço de domingo.

Abraços e beijos foram proibidos.

Nada de festas, shows, futebol, casamentos ou celebrações nas igrejas.

Os eventos musicais foram cancelados, cinemas e teatros foram fechados.

O medo tomou conta de todos.

A cidade ficou vazia e triste.

Somente os serviços essenciais eram autorizados a funcionar. Seus funcionários, mesmo com máscara, corriam grande perigo.

Os hospitais ficaram lotados e trabalhadores da saúde, mais expostos à contaminação, adoeceram em massa.

Inúmeras famílias perderam seus entes queridos.

O dinheiro para subsistência começou a faltar.

Os turistas desapareceram.

Eis que então, como num milagre, as águas dos rios e do mar ficaram limpas.

Os golfinhos voltaram a dançar seu balé perto das margens.

Tartarugas, peixes e camarões apareceram novamente.

O ar ficou mais puro. As árvores deram flores e frutos.

Em apenas três meses, a natureza se recuperou.

Depois veio a chuva, que lavou tudo.

As pessoas, então, perceberam o grande mal que faziam, e passaram a respeitar a natureza.

As bicicletas tomaram o lugar dos carros e das motos.

A reciclagem do lixo tornou-se prática comum.

Quase todos passaram a pensar duas vezes antes de efetuar qualquer compra; com isso, reduziu-se o consumismo desenfreado.

A empatia e a solidariedade passaram a pautar as relações sociais. As amizades verdadeiras foram fortalecidas.

O isolamento fez com que as pessoas olhassem mais para si mesmas, buscando novos valores e objetivos e, em consequência, multiplicaram-se os cursos à distância e os grupos de amigos virtuais.

O convívio entre pais e filhos ficou muito mais intenso e os laços familiares recuperaram seu valor.

A alimentação sofreu mudanças porque, com tempo para refletir e tendo que preparar suas próprias refeições, uma grande parcela da população começou a valorizar os alimentos naturais, a descobrir novos sabores... e aí, frutas, legumes e verduras passaram a ocupar lugar de honra nas mesas! O consumo de carnes caiu substancialmente porque as pessoas se deram conta de que os animais também sofrem.

O trabalho remoto cresceu e muitas pessoas deixaram definitivamente de sair de casa para comparecerem fisicamente aos seus empregos.

Como recompensa, por decisão unânime dos deuses, Éolo enviou o vento leste, da resignação e do retorno seguro, o “lestinho”, que recolocou as coisas nos seus devidos lugares, expulsando o ser invisível que tanto dano causara.

Depois de todo o sofrimento, as pessoas aprenderam a lição.

 

...E viveram felizes para sempre!

 

domingo, 11 de outubro de 2020

De repente 60+10 - Setenta em tempos da Quarentena

 

De repente 60+10

Setenta em tempos da Quarentena

Toc, toc, toc

As batidas na porta me tiraram do devaneio.

Setenta anos!

Uma vida inteira passando como num filme:

Onde está aquela jovem que me olhava do espelho e quem é esta velha que tomou o seu lugar?

Ainda sou aquela menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha desesperada pela perda precoce da mãe; aquela professorinha ingênua que enfrentou sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja, vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco! Ainda me sinto como aquela mãe aflita com a primeira febre do filho, hoje com mais de quarenta anos e pai de minha adorada neta.

Nascida no ano em que a televisão chegou ao Brasil, minha família só conseguiu comprar um aparelho usado dez anos depois e, em sua tela (cada vez maior e mais colorida), vi a chegada do homem à Lua, a queda do muro de Berlim, o assassinato de Kennedy, Luther King, John Lennon e algumas guerras modernas. Chorei copiosamente em intermináveis novelas e também com tristes notícias da vida real.

Tive o privilégio de viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza e Ana Carolina; da invenção da pílula e liberação sexual ao bebê de proveta e o pesadelo da AIDS.

Testemunhei a conquista dos cinco títulos mundiais do futebol brasileiro e quase morri de vergonha com a derrota por 7 x1 contra a Alemanha, em pleno Estádio do Mineirão, no Brasil.

Adolescente, dancei nos bailinhos ao som de Ray Connif, Pat Boone, Johny Mathis, entre outros.

Li e reli os clássicos e populares, Cervantes, Eça de Queiroz, Jorge Amado, Saramago, João Ubaldo, Vargas Llosa, Garcia Marques, Dan Brown e Agatha Christie, e muitos mais, como bom rato de biblioteca.

Encantei-me ao ouvir Mozart, Beethoven, Chopin e Bach.

Emocionei-me no escuro das salas de cinema com gigantes como Fellini, Scorcese, Tornatore.

Sobrevivi a três reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos cinquenta e dois anos, meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as aventuras do viver.

E quantas viagens pelo mundo, conhecendo Portugal e Itália, terras de meus ancestrais; e outros países da Europa, Américas, Oriente e África!..

O reencontro com as colegas da Escola Normal e a celebração de 50 anos de formatura foi um dos episódios mais relevantes dos últimos anos.

Curada de um câncer de mama, estava novamente lutando contra outro câncer, desta vez mais agressivo.

Nos intervalos de remissão, tinha aproveitado para levar minha netinha para conhecer a Disney e consegui voltar à Itália.

Aos trinta anos, estava tão ocupada lutando pela sobrevivência, que nem tive tempo de comemorar; aos quarenta, fiz um baile; aos cinquenta, dei uma festa num clube de campo; aos sessenta, me dei ao luxo de brindar com a família em Paris.

Agora, depois de tanta luta, estava completando setenta anos. A data merecia ser comemorada em grande estilo.

Logo depois de completar sessenta e nove anos, comecei a planejar as festividades: haveria uma festa com poucos familiares e amigos.

E uma viagem.

A escolha do destino levou meses. As despesas com o tratamento de saúde havia sido grande, portanto o destino não poderia ser muito distante.

Também teria que ser um lugar adequado a crianças pequenas.

A escolha recaiu sobre uma cidade de Minas Gerais, de nome Capitólio.

Represa, cânions, parque aquático, a escolha havia sido certeira. Só faltava decidir se seria preciso alugar um automóvel maior para a família viajar com mais conforto.

Isso não significa que tudo ia bem!

O grande maestro Antônio Carlos Jobim disse uma vez que o Brasil não é para principiantes

Eu me arriscaria a dizer que não é nem para profissionais.

Um país maravilhoso, com natureza exuberante e de dimensões continentais, vive uma história muito peculiar e um momento muito complicado.

Como se não bastasse a crise política e financeira, um inimigo invisível e mortal apareceu no extremo oriente.

Ninguém ficou muito assustado, pois a China era tão longe...

Médicos e demais cientistas diziam que era um tipo de gripe.

Em fevereiro, a Organização Mundial da Saúde declarou epidemia e em março a pandemia.

A Itália foi o primeiro país europeu a ser atingido de forma brutal, depois vieram a França, Inglaterra, Espanha e Portugal.

Em menos de um mês a doença se alastrou para o mundo todo, sendo os Estados Unidos o país com maior número de infectados.

E ninguém sabia como lidar com ela.

Por ser um vírus, as orientações eram para lavar bem as mãos, evitar contatos muito próximos.

Mas não havia remédio nem vacina.

Aos poucos foram descobertos novos tipos de contágio: começamos a tirar os sapatos para entrar em casa, higienizar objetos vindos de fora, passamos a usar máscaras.

No entanto, a providência mais dolorosa foi o isolamento.

Principalmente os idosos foram aconselhados fortemente a não sair de casa.

As crianças foram identificadas como principais vetores.

E então me vi trancada em casa, sem poder ter contato com minha netinha, de quem cuidava desde o nascimento.

O medo de sair de casa e contrair a doença era muito grande, mas a luta contra o câncer precisava continuar. Nunca pensei que minha grave doença ficaria em segundo plano.

Assim, tomando todos os cuidados, fiz os exames e iniciei um novo tratamento.

No momento em que pensava essas coisas tão sombrias, começou a tocar no rádio a música Imagine de John Lennon.

Como seria bom se tudo fosse como na canção:

Não haveria mais países nem fronteiras

Nem paraíso nem inferno, apenas o céu sobre nós

Nenhum motivo para matar ou morrer

Nem fome, nem miséria

Todos seriam irmãos

E, sem perceber, acabei adormecendo e sonhando que meu conto de fadas da infância tinha se realizado.

Nesse conto, a fada madrinha pergunta à menina se ela quer ter uma infância feliz e uma velhice com muitos problemas ou o inverso.

A menina escolhe a segunda alternativa e, após muitas aventuras e sofrimentos, acaba tendo uma velhice feliz, ao lado do príncipe encantado, seus filhos e netos.

Sonhei, então, com o mundo pós pandemia:

As pessoas passaram a ver o valor das coisas, e não seu preço;

Perceberam que as natureza não precisa de nós, nós é que precisamos dela;

A água dos rios e dos mares se purificou;

As florestas foram recompostas;

Depois que as pessoas deixaram de se alimentar de animais, as epidemias cessaram;

Há menos emissão de gás metano.

Os combustíveis fósseis foram substituídos por energia limpa e renovável;

Os encontros foram facilitados pelo tele transporte, que desloca as pessoas em questão de segundos.

Os agrotóxicos químicos foram substituídos por adubos orgânicos.

Não há mais doenças;

As pessoas não são discriminadas pela cor da pele, orientação sexual ou religião;

As escolas incentivam as crianças a desenvolver suas potencialidades, sem priorizar aquelas que dão mais “lucro”, e sim mais realização pessoal;

A arte e os esportes são valorizados e incentivados;

Os professores são bem formados e bem remunerados;

A saúde e a educação são prioridade de todos os governos;

Aliás, o sistema de governo mudou e há muito poucos parlamentares, porque as decisões são tomadas diretamente pela população, através das redes sociais.

Toc,toc,toc

Abri a porta e me deparei com meu filho, minha nora e minha netinha.

Todos de máscara.

Nas mãos da Isadora, um bolo de caneca.

Corri para chamar meu marido, pegamos um copo de vinho e todos juntos cantamos “Parabéns a você”.

E, nessa hora, naquele espaço exíguo à porta do meu apartamento, onde cabiam as pessoas que mais amo, percebi que aquela velinha acesa trazia uma luz de esperança.

E me senti no melhor aniversário de minha vida!

 

                          Abril de 2020