De repente 60+10
Setenta em tempos da
Quarentena
Toc, toc, toc
As batidas na porta me
tiraram do devaneio.
Setenta anos!
Uma vida inteira
passando como num filme:
Onde está aquela
jovem que me olhava do espelho e quem é esta velha que tomou o seu lugar?
Ainda sou aquela
menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha
desesperada pela perda precoce da mãe; aquela professorinha ingênua que
enfrentou sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja,
vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco! Ainda me sinto como
aquela mãe aflita com a primeira febre do filho, hoje com mais de quarenta anos
e pai de minha adorada neta.
Nascida no ano em
que a televisão chegou ao Brasil, minha família só conseguiu comprar um aparelho
usado dez anos depois e, em sua tela (cada vez maior e mais colorida), vi a
chegada do homem à Lua, a queda do muro de Berlim, o assassinato de Kennedy,
Luther King, John Lennon e algumas guerras modernas. Chorei copiosamente em
intermináveis novelas e também com tristes notícias da vida real.
Tive o privilégio de
viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de
Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a
Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza
e Ana Carolina; da invenção da pílula e liberação sexual ao bebê de proveta e o
pesadelo da AIDS.
Testemunhei a
conquista dos cinco títulos mundiais do futebol brasileiro e quase morri de
vergonha com a derrota por 7 x1 contra a Alemanha, em pleno Estádio do
Mineirão, no Brasil.
Adolescente, dancei
nos bailinhos ao som de Ray Connif, Pat Boone, Johny Mathis, entre outros.
Li e reli os
clássicos e populares, Cervantes, Eça de Queiroz, Jorge Amado, Saramago, João Ubaldo, Vargas Llosa,
Garcia Marques, Dan Brown e Agatha Christie, e muitos mais, como bom rato de biblioteca.
Encantei-me ao ouvir
Mozart, Beethoven, Chopin e Bach.
Emocionei-me no
escuro das salas de cinema com gigantes como Fellini, Scorcese, Tornatore.
Sobrevivi a três
reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da
internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos cinquenta e
dois anos, meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as
aventuras do viver.
E quantas viagens
pelo mundo, conhecendo Portugal e Itália, terras de meus ancestrais; e outros
países da Europa, Américas, Oriente e África!..
O reencontro com as
colegas da Escola Normal e a celebração de 50 anos de formatura foi um dos
episódios mais relevantes dos últimos anos.
Curada de um câncer
de mama, estava novamente lutando contra outro câncer, desta vez mais
agressivo.
Nos intervalos de
remissão, tinha aproveitado para levar minha netinha para conhecer a Disney e
consegui voltar à Itália.
Aos trinta anos,
estava tão ocupada lutando pela sobrevivência, que nem tive tempo de comemorar;
aos quarenta, fiz um baile; aos cinquenta, dei uma festa num clube de campo;
aos sessenta, me dei ao luxo de brindar com a família em Paris.
Agora, depois de
tanta luta, estava completando setenta anos. A data merecia ser comemorada em
grande estilo.
Logo depois de
completar sessenta e nove anos, comecei a planejar as festividades: haveria uma
festa com poucos familiares e amigos.
E uma viagem.
A escolha do destino
levou meses. As despesas com o tratamento de saúde havia sido grande, portanto
o destino não poderia ser muito distante.
Também teria que ser
um lugar adequado a crianças pequenas.
A escolha recaiu
sobre uma cidade de Minas Gerais, de nome Capitólio.
Represa, cânions,
parque aquático, a escolha havia sido certeira. Só faltava decidir se seria preciso
alugar um automóvel maior para a família viajar com mais conforto.
Isso não significa
que tudo ia bem!
O grande maestro
Antônio Carlos Jobim disse uma vez que o Brasil não é para principiantes
Eu me arriscaria a
dizer que não é nem para profissionais.
Um país maravilhoso,
com natureza exuberante e de dimensões continentais, vive uma história muito
peculiar e um momento muito complicado.
Como se não
bastasse a crise política e financeira, um inimigo invisível e mortal apareceu
no extremo oriente.
Ninguém ficou muito
assustado, pois a China era tão longe...
Médicos e demais
cientistas diziam que era um tipo de gripe.
Em fevereiro, a
Organização Mundial da Saúde declarou epidemia e em março a pandemia.
A Itália foi o
primeiro país europeu a ser atingido de forma brutal, depois vieram a França,
Inglaterra, Espanha e Portugal.
Em menos de um mês a
doença se alastrou para o mundo todo, sendo os Estados Unidos o país com maior
número de infectados.
E ninguém sabia como
lidar com ela.
Por ser um vírus, as
orientações eram para lavar bem as mãos, evitar contatos muito próximos.
Mas não havia
remédio nem vacina.
Aos poucos foram descobertos
novos tipos de contágio: começamos a tirar os sapatos para entrar em casa,
higienizar objetos vindos de fora, passamos a usar máscaras.
No entanto, a
providência mais dolorosa foi o isolamento.
Principalmente os
idosos foram aconselhados fortemente a não sair de casa.
As crianças foram
identificadas como principais vetores.
E então me vi
trancada em casa, sem poder ter contato com minha netinha, de quem cuidava
desde o nascimento.
O medo de sair de
casa e contrair a doença era muito grande, mas a luta contra o câncer precisava
continuar. Nunca pensei que minha grave doença ficaria em segundo plano.
Assim, tomando todos
os cuidados, fiz os exames e iniciei um novo tratamento.
No momento em que
pensava essas coisas tão sombrias, começou a tocar no rádio a música Imagine de
John Lennon.
Como seria bom se
tudo fosse como na canção:
Não haveria mais países nem fronteiras
Nem paraíso nem inferno, apenas o céu sobre nós
Nenhum motivo para matar ou morrer
Nem fome, nem miséria
Todos seriam irmãos
E, sem perceber,
acabei adormecendo e sonhando que meu conto de fadas da infância tinha se
realizado.
Nesse conto, a fada
madrinha pergunta à menina se ela quer ter uma infância feliz e uma velhice com
muitos problemas ou o inverso.
A menina escolhe a
segunda alternativa e, após muitas aventuras e sofrimentos, acaba tendo uma
velhice feliz, ao lado do príncipe encantado, seus filhos e netos.
Sonhei, então, com o
mundo pós pandemia:
As pessoas passaram
a ver o valor das coisas, e não seu preço;
Perceberam que as
natureza não precisa de nós, nós é que precisamos dela;
A água dos rios e
dos mares se purificou;
As florestas foram
recompostas;
Depois que as
pessoas deixaram de se alimentar de animais, as epidemias cessaram;
Há menos emissão de
gás metano.
Os combustíveis
fósseis foram substituídos por energia limpa e renovável;
Os encontros foram
facilitados pelo tele transporte, que desloca as pessoas em questão de segundos.
Os agrotóxicos
químicos foram substituídos por adubos orgânicos.
Não há mais doenças;
As pessoas não são discriminadas
pela cor da pele, orientação sexual ou religião;
As escolas incentivam
as crianças a desenvolver suas potencialidades, sem priorizar aquelas que dão
mais “lucro”, e sim mais realização pessoal;
A arte e os esportes
são valorizados e incentivados;
Os professores são
bem formados e bem remunerados;
A saúde e a educação
são prioridade de todos os governos;
Aliás, o sistema de governo
mudou e há muito
poucos parlamentares, porque as decisões são tomadas diretamente pela
população, através das redes sociais.
Toc,toc,toc
Abri a porta e me deparei com meu filho, minha nora e minha netinha.
Todos de máscara.
Nas mãos da Isadora,
um bolo de caneca.
Corri para chamar
meu marido, pegamos um copo de vinho e todos juntos cantamos “Parabéns a você”.
E, nessa hora,
naquele espaço exíguo à porta do meu apartamento, onde cabiam as pessoas que mais amo, percebi que aquela
velinha acesa trazia uma luz de esperança.
E me senti no melhor
aniversário de minha vida!
Abril de 2020