domingo, 18 de março de 2012

MEUS AMORES DA FEIRINHA- por Rita Figueiredo


De longe, ele conhece meu carro, vê o sinal de luz e decodifica a pergunta: Onde? A corridinha, os braços em ‘L’ apontam em resposta: Aqui! Ele retira a garrafa pet com água até a metade, usada à guisa de cone para garantir minha vaga na Rua Treze de Maio, segura o trânsito e me ajuda a estacionar. Os comentários de sempre sobre o tempo, sobre a hora em que cheguei, o movimento do dia, o noticiário da noite, sobre o colorido de minha roupa... É o guardião Gilmar, gentil e infalível recepcionista para meu costumeiro passeio de domingo.

E lá vou eu me embrenhar na alegria, no calor e na muvuca organizada da Feirinha de Artesanato do Largo da Ordem. Denominação que minha neta, Marina, rejeita veemente: Esta aqui não é uma feirinha, é uma feirona, vóia! E a menina tem razão, pois já não cabe o diminutivo para esse antigo evento domingueiro que hoje caminha, com suas mil e tantas barracas, para cada vez mais distante do largo que lhe dá o nome. Mas para nós, curitibanos, será sempre Feirinha, não pelo tamanho e sim pelo carinho.

Caixas de fósforo, palitos de dente, latas de sardinha... Tem que ser pequeno para se tornar grande nas mãos e na imaginação daquele sábio de cabelos grisalhos e desgrenhados, eventualmente cobertos por um boné pra lá de surrealista. Minha primeira parada na Feirinha: Bom dia, Hélio Leite! O artesão minimalista retribui o cumprimento com um sorriso moleque, e já vai colando o adesivo do botão do dia em minha roupa. Fico ali um tempo, compondo a platéia de outros boquiabertos a ouvir-lhe as fantásticas histórias sobre o significado de cada uma das peças. Com humor e profundidade, elas nos ensinam a descobrir o perfeito equilíbrio entre o sagrado e o profano. A louca criação, ajuizada alternativa escolhida pelo ser, para não acabar no Pinel. Estou quase saindo, quando chega o João Bello, com seu violão. O Semeador de Sonhos encontra ali ambiente propício pra dar sua canja. Ô, coisa boa!

E a Tamara? Onde andará? Todo domingo, eu olhava aquele vazio, primeiro deixado por ela, e depois pela própria barraca. Quantas túnicas indianas da melhor qualidade comprei ali. E as saionas bordadas. As conversas sobre os chakras, a aura, a energia vital. Afora as muitas risadas em nossos papos de mulher. Já faz uma data que ela sumiu. Cadê a Tamara? Êpa!! Olha ela lá, dentro da sua barraca!!! Foi agora, neste domingo. Tamaaara!!!! Nosso abraço emocionado, compartilhado pelo esvoaçar das roupas penduradas, e testemunhado pelo olhar risonho de seu filho Junior ao fundo. Ela explica: A barraca voltou, mas eu não. Estou só de passagem, por motivo de saúde, nada grave. E me conta que está morando em Santa Helena, lá no sudoeste do Paraná, fazendo seu trabalho de terapeuta. Parou com a confecção. Agora só revende. O Junior ficou, cuidando dos negócios. Hora boa de relembrar, matar a saudade, rir como nos velhos tempos. Ô, Tamara, volta a criar, que teu organismo se re-equilibra... e a Feirinha agradece.

Atravesso o corredor de gente, entro por uma antiga porta, subo os três degrauzinhos e já sou anunciada pelo sino-do-vento, enquanto respiro fundo para mergulhar na vibração emanada pelo reino encantado da loja Gepetto. A dupla de mestres de cerimônia se adianta com sua costumeira saudação, elegante e amiga. Você está linda hoje!!. Não é um simples elogio. Meu ser reconhece e desfruta do mágico poder que aquelas palavras têm de ajudar a volatilizar qualquer resquício do estresse da semana. Todo santo domingo, eu literalmente peço: Sua bênção, Gilson e Gilberto! Eles riem, cada um a seu modo, sei lá se tendo alguma consciência do efeito que sua energia provoca em meu ser. Ali fico à vontade pra liberar a louca em mim, muitas vezes me transformando numa verdadeira drag-queen, a imitar os trejeitos do casal de gays, para lhes retribuir um pouco do bem que eles me fazem. A conversa se alterna de nível entre um e outro: com o Gilberto, ela voa solta pelas transcendências da vida; com o Gilson, ela se mantém na graça, às vezes no escracho, do dia-a-dia. Quase não dá para papear com os dois juntos, não pelo desnível, mas por causa do movimento da freguesia, mesmo com o trabalho dedicado e sorridente da antiga funcionária Sueli.

Ao retornar à rua, sigo o meu nariz. Hmmm... Paro em frente à barraca perfumada, rodeada de outros narizes curiosos cheirando, vareta por vareta, e espero paciente a minha vez. Não dá pra ter pressa na Feirinha. Aliás, a gente nem quer ter pressa mesmo. Bom dia, moça do Sândalo! Hoje ele está especial! Essência importada! Quantos dessa vez? É o Tadeu, agitado atrás do balcão, simplório, como se não fosse ele o criador, o grande mago do incenso. Todo domingo tem novidade. Vai, leva esse pra experimentar. É um purificador de energia. Depois ‘cê me diz o que achou. Ali na retaguarda, sua incansável ajudante, a mãe Filó. Ele desvia o olhar para ela, enquanto aponta o polegar maroto em minha direção: Essa daí tem um faro!

Cê tem visto a Antara? A xamã Antara não para, anda pelo mundo, cada tempo num lugar, cada lugar num tempo, vai ver que até adivinhando ser assunto dos papos entre seus velhos amigos: eu e o Luís – o mestre garapeiro. E ali mesmo, ao pé da sarjeta, no canto da Praça do Relógio das Flores, ao som Carinhoso do antigo Regional, o ar temperado pelo cheirinho dos tacos mexicanos da vizinha Helena, nós dois mergulhamos nas reflexões sobre mudanças cósmicas, aceleração dos tempos, sacralidade do humor, a importância do Presente... O movimento do entorno e do Interno cria o contexto favorável à bendita união do prosaico com o profundo. Não é à toa que o Luís tem aquela cara de Jesus Cristo do Woodstck... E, como se não bastasse, ainda conta com Maria, sua fiel colaboradora. Na maior boa vontade, ela lava a moenda a fim de me preparar a garapa, sempre pura, só com gelo. Oh Maria, mais doce que a cana, muito grata por seu sorriso e também pelo chorinho... do caldo.

E por falar em Maria, minha próxima parada é a barraca de uma devota filha da Senhora da Conceição. É a Lilian, tecelã da arte colorida, toda feita NoTear, nome de sua santa grife. Bom dia, minha flor! Ela emerge em meio a xales e cachecóis, olhos humildes, cabelos longos e prateados, sorriso meigo, voz mansa. No abraço, me sinto como que acolhida pela versão atualizada da Virgem... E ali ficamos, duas irmãs por parte da Grande Mãe, confidenciando nossas mágicas experiências femininas. Ela, mais para fada; eu, mais para bruxa... Tudo quase sempre termina com a compra de mais um xale, modelo multiuso, para mim ou para presente. Na hora de pagar, ela gentilmente oferece desconto, esquecendo que não costumo pechinchar preço a nenhum artesão, pelo imenso valor que dou a seu precioso trabalho.

Há alguns anos, era só atravessar o corredor, mais dois ou três passos, e eu já chegava à barraca do Messala. Mas ele é outro que sumiu. Faz tempo que a vaga está ocupada por novo artesão. Lembro-me de seu ser iluminado e iluminante, expresso no verde do olhar risonho e nas estampas de suas criações: vestes pintadas à mão com motivos indianos e figuras de elementais. Quantas vezes estivemos refletindo sobre as tradições espirituais, do Ocidente ao Oriente... Da Índia ao Índio - nome dado ao evento que ele promoveu lá na Reserva do Cambuí. O encanto da sagrada mistura: a indiarada rodeada de incenso, entoando Mantras; os sanyasis tocando chocalho ao redor da fogueira. Até que, neste belo domingo, eis que fui lá pra cima, conhecer mais uma extensão da Feirona, na rua Kellers. Nossa! Tá vindo até aqui! E já tem três corredores de barracas! Êta Messala!! O zóião ainda mais verde, em contraste com o super-bronzeado da pele. Ele sai da nova barraca e diz que voltou recentemente. Conta animado, e com detalhes, sobre os anos em que esteve a navegar pelos mares do sul e do norte, exercendo função de piloto e maitre, em iate de bacana. Uma experiência e tanto! Bem-vindo, artesão Messala, de volta à terra, nem tão firme assim, de nossa Feirinha!

Odeio shoppings! Não vejo graça nos produtos; acho tudo caro; uma estranha dor nas costas me acomete sempre que ando por ali. E aquele ar condicionado que nos faz sentir frio no verão e calor no inverno! Shopping, só para ir ao cinema, para comprar livros ou presentear algum jovem da família que curte grife. Afora isso, saio de lá sempre de mãos vazias. Mas... me bota na feira de artesanato pra ver. Meu espírito consumista se alvoroça inteiro! Comprar vira uma festa. Meu apartamento é quase uma exposição de artesanato. Ando me contendo pra não levar tudo o que gosto. Hoje em dia, estou mais atraída pelas roupas, para mim ou para presente. Além daquelas anteriormente mencionadas, tenho um monte de peças da Roupa Rara, primorosamente confeccionada no tear da Darci. Outras tantas, originais e exclusivas, fabricadas pela Milho Guerreiro, sob a bênção guarani de Avati, e sedutoramente comercializadas pela Tânia. Delícia de amor, esse entre barraqueiras e freguesa!

E lá vou eu, já carregada de sacolas, comendo bala de coco artesanal, uma atrás da outra, alternando com bolacha de queijo artesanal, pra cortar o doce. Na subida em direção à praça das ruínas, paro pra ouvir o canto inspirado, gritado pelo compositor Plá. Sem interromper sua apresentação, ele me faz um significativo aceno com a cabeça. Logo depois, cruzo com o amigo Batista de Pilar, vestindo sua poesia estampada na camiseta e seu chapéu à moda de senhor de respeito que já foi candidato a vereador. A emoção de lembrar que esses caras encontraram saída no beco da rua da amargura... Aliás, a Feirinha abre seus corredores para acolher todo tipo de gente diferente que, em vez de querer se livrar da loucura, sabiamente descobriu um jeito de expressá-la através da arte, curando o seu ser. Aqui e ali, nos deparamos com músicos, cantores, poetas, atores, palhaços, dançarinos, tudo artista da melhor qualidade, mas tudo fora do normal, a se deixar levar pelo natural...

E o meu passeio de domingo vai chegando ao fim. Um Gran Finale... De longe, os olhos buscam a figura verde-amarela do boneco Anarqino, pendurado no mastro, marcando território, exibiiido, igualzinho a seu pai, como que bradando: “É aqui mesmo!”. Os demais que me perdoem, mas em que pese o sangue, a convivência, o acompanhamento da história, a corujice, estou indo ao encontro do maior de todos os meus amores da Feirinha! Mas antes, há que passar por um pequeno ritual: Buenos dias, Juanca! E me deixo inundar pela energia benéfica do amigo chileno que, com muito talento, dá no couro brasileiro com suas bolsas, carteiras, porta-níqueis. Depois, vem o corredor de baús mágicos: Com sua licença, Sérgio! A figura bonachona do artesão já vai contando a piada do dia, enquanto me abre o caminho de acesso à única barraca que entro por trás: a da AgendArte. O criador, meu irmão caçula Gerson, está ali de costas, degustando sua costumeira tapioca, o café da manhã que não deu tempo de tomar, por causa da correria de arrumar a barraca na hora exigida. Bom dia, meu Santo! Ao reconhecer minha voz, pronunciando o apelido que lhe dei desde pequeno, ele se vira e me presenteia com seu sorriso solar e seu abraço gostoso: E aí, guria?! Enfia a mão embaixo do balcão, pega seu megafone colorido pra anunciar a chegada da escritora Rita Figueiredo aos quatro ventos! Não dá a mínima pra meu olhar meio constrangido e já vai tratando de me trazer um exemplar da agenda recém publicada, a fim de me mostrar uma coisa interessante... Aliás, coisa interessante é o que não falta na AgendArte, cujo traço peculiar é o de ser duas: uma que por si mesma diverte e encanta o leitor; e a outra que emerge surpreendente à medida que o Gerson vai nos traduzindo os detalhes dos textos e das ilustrações... Coloco minhas sacolas de compra no muro que faz fronteira entre a barraca e a Praça das Ruínas, e ali me sento. Meus pés doem, pelas mais de duas horas de caminhada por aquelas ruas de paralelepípedos. O eficiente anjo Gabriel, com seus longos cabelos dourados, deixa a freguesia um pouco e vem me dar um beijo, enquanto pede ao amigo-patrão que lhe libere para ir tomar lanche. O Gerson assume o posto: O preço da Agenda é 24,99. O troco está aqui atrás! E se diverte com a reação das pessoas ao se depararem com a moeda de 1 centavo, marotamente impressa na contracapa. Fico observando aquele cara de cabelos grisalhos, rareando no cocuruto, calças largas, camiseta colorida, nariz de palhaço, enquanto a memória me remete a anos atrás. Engenheiro civil, de terno e gravata, alto funcionário do antigo BNH, casamento certinho, assim era meu irmão, típico bom moço curitibano, normal. Era essa a sua loucura, que acabou por levá-lo ao fundo do poço, útero necessário para a transformação. Tive o privilégio de testemunhar e auxiliar seu renascimento, tornando-o mais um cidadão do universo natural da arte, registrado com o nome de Anarqio Burgueis do Pau-Brasil – o Naqinho, primeiro personagem condutor da AgendArte. Bah! Isso já vai pra mais de 18 anos! De repente, minhas divagações são interrompidas pela visão luminosa e colorida de um trio surgido na frente da barraca. As três mulheres do Gerson: a grande, a média e a pequena, como ele mesmo costuma dizer. Quem primeiro se manifesta, e com barulho, é a pequena Luiza, bisquizinho serelepe, que honra o signo ariano com seu entusiasmo e seu jeito de mandoninha. Logo ao lado, brilha Alice, a média, não só pelo tamanho, mas pelo equilíbrio de seu ser, os olhos doces e cintilantes da artista nata, atriz de teatro. Perguntem para o Gerson por que suas filhas me tratam de vóinha... Às vezes, tenho de lidar com uma certa culpa de não dedicar mais tempo a conviver com essas meninas adoráveis... E aí vem a grande mãe, linda Simone, com sua risada gostosa, sensível co-criadora, parceiraça, profunda conhecedora tanto dos anseios do Gerson como dos intrincados recursos informáticos, ambos necessários para dar continuidade ao sonho da AgendArte. Ela me saúda: Oi, Cu! E eu respondo à altura: Oi, Cu! Foi assim que nós duas resolvemos desmentir o dito popular que afirma: Se cunhada fosse bom, não começaria com ‘cu’. E lá se vão as três dar uma volta e comer alguma coisa. Meu estômago reage à ideia... Vou indo. Tchau, Santo! Boas vendas! E a sua resposta de sempre: Já??, seguida do beijo estalado. Lindinho.

No caminho, ainda dou uma passada na Praça da Ruínas pra assistir o mestre Quincas e seu animado grupo de Capoeira. Ele sai da roda e hesita antes de me dar um abraço: Tô suado!  Eu me aproximo: Vem cá. Abençoado suor...

Ao chegar em casa, tomo consciência do bem que estou me sentindo. O coração pleno de gratidão aos Meus Amores da Feirinha, todos a expressar arte na vida, e vida na arte, apenas sendo o que são, naturalmente...

Curitiba, Primavera de 2010

2 comentários:

  1. Rita quero ir pra Curitiba pra passear na Feirinha com você e conhece essa gente maravilhosa. Muito gostosa sua crIonica.

    ResponderExcluir
  2. Delícia de Crônica Rita Figueiredo!!! Gostei muito do seu modo de escrever leve e gostoso. Bjs carinhosos.

    ResponderExcluir