sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

FRAGMENTO DE BRUMA- Por Maria Tereza Callefe




Cada dia que passa é mais uma oportunidade de enfrentar um novo som, um novo caminho, um novo horizonte. Há um corredor imenso a percorrer. O que está por vir? Como será? Vai dar certo? Bem que eu gostaria de ficar aqui encolhida, vendo as gaivotas furando as cortinas do oceano. Mas havia um caminho e um enfado que incomodava os meus dias. Ter que partir sempre, sempre foi a minha maneira de sentir-me viva. Havia a outra ilha, houve sempre uma outra ilha, um outro lado, um outro-que-fazer. Precisava ir.
Tive por cinco anos, precisamente cinco anos, um himalaia diante dos meus olhos. Quando o sol nascia, quando as brumas envolviam tudo, quando anoitecia, quando o vapor começava a aparecer lá longe, quando se ia, quando se vinha. Era a minha ilha-himalaia. Sempre enfeitada com um chapéu de nuvem.
Quando os dias eram muito frios, a nuvem agarrava-se à pontada ilha e ficava durinha de frio até que viesse um raiozinho de sol fazer-lhe cócegas e, logo logo, ela virava de novo chapéu.
De manhã vinham barcos carregados de cachos de uvas suadas de sol e de sal. Os homens do Pico – era o nome da ilha-himalaia- descarregavam enormes cestas de frutas e o cais inteiro virava o perfumado armário onde a velha avó escondia as maçãs para dividir com alguma neta, numas horas muito especiais de doce cumplicidade.
Agora não sei onde pára o cais e começa o armário de maçãs escondidas. Só sei que há uma saudade abarrotada de cheiros da infância.
A criança que um dia sentiu o perfume de um armário de maçãs, a abrir-se, carrega consigo uma vontade-gancho-de-alpinista. E um dia mais tarde, na virada da montanha e quando tudo estiver desmoronando, e quando continuar subindo for mais calvário que desafio, um braço forte que se chama memória-saudade, concretizada nos doces cheiros da infância – esse braço forte será apoio, gancho de alpinista, para deter-se um pouco, só um pouco, apenas o tempo necessário para um suspiro.
Ah! Minha ilha-himalaia, daqui te vejo, te pressinto, te revisito. Estou diante de ti. Protege-me, cobre algumas horas, bem poucas foram, mas tão amargas, tão amargas que estar sozinha foi o mais desesperado desejo dessas bem poucas horas. Negros corvos rondaram por muitos anos essas bem poucas horas. Roçaram as asas num raio de luz e fizeram duras sombras. Quebraram todas as bússolas. Queimaram os remos. Roubaram o vento das velas. Sujaram as asas brancas que estavam por vir. Pisotearam as violetas escondidas no canto úmido do jardim.
Foram longos vinte anos de emparedamento. A alma e o coração de costas e a vida passando azul, dourada, feito alegre sinfonia. O coração e a alma desfilando...de costas.
Do outro lado do oceano, escorregando bem para baixo, num reino cheio de luz, cheio de graça, haveria manhãs, “tão bonitas manhãs”, mas por enquanto, “neste mar de longo, tanta tormenta e tanto dano...”
Hora de partir. Cortar as amarras. Recolher a âncora. Arrebentar as raízes.
O berro surdo do navio estourou os diques represados dos emigrantes. Tudo acabado. Não mais gotas de hortênsias, não mais olhos azuis do velho Catita, não mais armário de maçãs da velha avó, não mais ilha-himalaia.
As sete colinas vão sumindo. Agora são seis e ainda há lenços no cais. São cinco e o rapaz das serras ainda não conseguiu chorar. São quatro e todos são estátuas de pedra. São três e o rapaz das serras grita “ó mãe...” São duas e agora o mar salgado recolhe o lamento úmido dos sem-pátria. Ultima colina e...o mar.
O mar. Céu e mar durante treze dias.
Numa manhã cravada de tanto azul, os emigrantes aportaram a um reino cheio de graça, cheio de luz, onde, naturalmente, muitos encontrariam o seu anjo exterminador de brumas.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

DIA DA CHEGADA- Por Maria Tereza Callefe



26 de agosto de 1958. Manhã de sol. Baía da Guanabara. Paraíso encontrado. Reflexos dos montes no mar. Deslumbramento. Acredito que nunca mais terei a sensação de chegada- a que sempre estava partindo. A baía abraçava os imigrantes, docemente, no jeito de festa só para alguns, os mais esperados. Assim me sentia naquela manhã tão cheia de luz, mas tão cheia a ponto de me doer o peito. Sempre tive esta reação diante do indescritível: uma dor amarrava-me o peito e ficava sem fala, curtindo docemente uma catarse desejada. Ah, Rio de Janeiro, visto de longe, há tantos anos, que saudade...
Havia ainda um outro porto, o último. Outros já se foram: Lisboa, o da despedida, Las Palmas onde comprei uma boneca, que mania de boneca até aquela idade – 20 anos.
Recife, e uma bebida deliciosa, o travo bom e definido dos trópicos: guaraná. Se as crianças de hoje soubessem que sabor... Ainda está na memória gustativa. No Rio de Janeiro, outra doçura que eu curto até hoje: banana ouro.
Agora o último porto: Santos. Lá estava a família. Achei meus tios muito velhos e o comentário pulou rapidinho sem que pudesse contê-lo. Claro que não gostaram. Lembro-me de que o Rafael, um dia chegando a Caraguá, veio com esta: Vó, como você está velha!. Só que ele tinha 6 ou 7 anos e eu, quando fiz o comentário infeliz tinha 20 anos. Lerda que eu sou. .
Lembro-me de que fui beber água na biquinha de São Vicente, tradição  mantida pelos imigrantes para ficarem  para sempre no Brasil . Com água da biquinha ou sem ela, quero morrer nesta terra, minha verdadeira vera cruz. Passados 48 anos, estou-me vendo descendo as escadas do navio de boneca ao colo e acho que era daquelas de papier machê que não podem ser lavadas... Enfim. Ninguém é perfeito. Mas as coisas que deveriam ser estão tão longe, tão perdidas que já não doem mais. Lembro-me também,  vagamente, de que tivemos que aguardar a bagagem na alfândega. Acho que almoçamos num restaurante, não tenho certeza e depois fomos para São Bernardo do Campo onde meus tios moravam. Quando fui chegando perto da Brastemp, o coração caiu-me aos pés, quase literalmente. Que entrada feia. Tinha vindo de Lisboa, cidade linda, alegre, colorida, aberta para o Tejo, de olhos posto no mar infindo, e agora eu ali, emparedada, sem o meu horizonte de todos os dias – o mar – a grande janela aberta por onde sempre consegui me evadir. Que feio que era tudo aquilo. Pensei que não fosse suportar as saudades. Chorava todos os dias. Vivia no correio mandando cartas. Se tivesse dinheiro teria voltado para Portugal, sem pestanejar. Ainda bem que não havia essa possibilidade. Foi melhor assim. Sempre tive os obstáculos como anteparos para atitudes que não deveria tomar.
Tive todo o apoio do tio Caetano para continuar os meus estudos. Deveria terminar o curso clássico, naquela época correspondente ao segundo grau. Só que havia um tal exame de adaptação. Deveria fazer provas de matérias que não tivera em Portugal: História do Brasil, Geografia do Brasil e Latim.  E tudo em nível de 2º grau. O problema era latim: onde e com quem estudar? Tio Caetano conhecia uma senhora italiana, professora. Levou-me até ela e ali fiquei conhecendo uma das grandes amigas desta terra: D. Ernestina. Que professora! Vai ter um capítulo especial nestas lembranças. Em poucos meses, pôs-me no ponto de traduzir  Virgílio, com alguma dificuldade, é certo. Consegui aprovação nesse tal exame de adaptação que, por sinal, não foi muito fácil. Na altura, já estava matriculada num colégio de 5ª categoria: Instituto de Ciências e Letras “Alfredo Pucca”. O nome impressionava, mas o nível era de chorar. Mais tarde, quando conheci meu marido, fiquei sabendo que ele também tinha estudado lá, alguns anos antes de mim – temos 6 anos de diferença. Por pouco ele não me passava a cantada naquela época. Mas ,  ao que parece, nós dois andamos uns 20 anos em círculo, até que a vida virou uma esquina e aqui estamos nós há 31 anos fazendo piruetas nesta estrada, meio picadeiro, meio passarela, meio trilha, meio palco iluminado. Mas esta nossa história merece um capítulo à parte, muito especial. Até lá, muita água vai rolar.
Caraguá, 07 de abril de 2003.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

OH, HAPPY DAY!- Por Maria Tereza Callefe


HISTÓRIA DE UM MENINO DE RUA, DA MINHA RUA, DO MEU CORAÇÃO, DA MINHA ALMA OU...
OH, HAPPY DAY!
ERA UMA VEZ....
ASSIM VAI COMEÇAR A HISTÓRIA CHEIA DE UMA LUZ DE ASTROS DE LONGÍNQUAS GALÁXIAS.
ENTÃO, ERA UMA VEZ UMA JOVEM SENHORA NUMA TARDE DE DOMINGO LUMINOSO. ÚNICO DIA DE FOLGA, JÁ QUE VIVIA ENVOLVIDA COM UM LAR QUE JÁ FORA LHE APRESENTADO PRONTO: TRÊS FILHOS ADOLESCENTES, - FILHOS DE UMA JOVEM MÃE QUE A VIDA NÃO PERMITIU PERMANECER MUITO TEMPO NESTE PLANO – TRÊS CACHORROS, UM PAPAGAIO QUE FALAVA PALAVRÕES, UM MARIDO POR QUEM ELA FICARA COM OS QUATRO PNEUS ARRIADOS E UMA PROFISSÃO -: PROFESSORA DE PORTUGUÊS, PROFISSÃO POR QUEM SE APAIXONARA DESDE OS PRIMEIROS ANOS DE SUA ALFABETIZAÇÃO, NUMA PERDIDA ILHA, DE UM REMOTO ARQUIPÉLAGO, PARAÍSO PERDIDO NO ATLÂNTICO.
POIS BEM, A JOVEM SENHORA RESOLVERA, NAQUELE DOMINGO, VISITAR UMA PRIMA, DIRIGENTE DE UM LAR DE CRIANÇAS PARA QUE ELA VISSE O DESENVOLVIMENTO DE UMA CRIANÇA, ADOTADA HÁ UM ANO.
CUMPRIMENTOS, ABRAÇOS, “NOSSA, COMO CRESCEU...” ESSAS PALAVRAS DE SEMPRE.
NUMA DADA ALTURA , A DOCE DIRIGENTE DO LAR VEM COM UMA NOVIDADE:
PALAVRAS TEXTUAIS:
“CHEGOU UM MENININHO DE CINCO DIAS E GOSTARÍAMOS MUITO QUE ELE FOSSE ADOTADO POR UM CASAL ESPÍRITA.” PENSEI COMIGO: “SE O RECADO É PARA MIM, NEM PENSAR. FINAL DE ANO, UM MONTE DE PROVAS PARA CORRIGIR, CONSELHO DE CLASSE, CASA, ADOLESCENTES COM TODAS AS CARACTERÍSTICAS QUE LHES SÃO PECULIARES, TRÊS CACHORROS, FEÍNHOS, UM PAPAGAIO BOCA SUJA, UM MARIDO COM UMA VIDA FINANCEIRA NÃO MUITO ESTÁVEL, NEM PENSAR...”
A OUTRA JOVEM SENHORA SAIU E VOLTOU COM UM PACOTINHO, AQUELE QUE SE USAVA PARA ENROLAR CRIANCINHAS. COLOCOU O PACOTINHO NOS MEUS BRAÇOS E ENTÃO, O QUE ERA APENAS UM DOMINGO ENSOLARADO VIROU O HAPPY DAY MAIS EMOCIONANTE DE TODA A MINHA VIDA. QUANDO FIXEI O ROSTINHO DAQUELE NENEZINHO BATEU, COMO SE FORA TÉCNICA DE FOTOSHOP, A FOTOGRAFIA DE MEU AVÔ MAURÍCIO. UM AVÔ QUE EU NÃO CONHECERA, MAS DO QUAL HAVIA UMA FOTOGRAFIA NA VELHA SALA DE MINHA AVÓ. QUANTO TEMPO DUROU ESSE ÊXTASE, NÃO POSSO MEDIR. FIQUEI NUMA OUTRA DIMENSÃO A PONTO DE NÃO SER CAPAZ DE VER O MEU MARIDO E A OUTRA CRIANÇA NA MINHA FRENTE. FOI PRECISO QUE A MARLENE, A DOCE MARLENE, PERCEBENDO O FATO, JÁ QUE ERA VIDENTE DE PRIMEIRA LINHA, ME SACUDIU, LEVEI UM SUSTO E VOLTEI. CUMPRIU-SE ASSIM O QUE ESTAVA ESCRITO NAS ESTRELAS: NUM DOMINGO DE SOL DUAS CRIATURAS SE ENCONTRARAM DEPOIS DE LONGAS CAMINHADAS PELAS SENDAS DA EVOLUÇÃO. CONCLUSÃO: FUI DE BOLSA E VOLTEI COM UM MENINO DE CINCO DIAS – AINDA COM O UMBIGO PARA CURAR – UMA MAMADEIRA E UM PACOTE DE FRALDAS. O QUE EU NÃO HAVIA PENSADO ERA NOS TRÊS ADOLESCENTES, TRÊS CACHORROS, UM PAPAGAIO, UM MARIDO MEIO ENCRENCADO FINANCEIRAMENTE, UM MONTE DE PROVAS, SALA DE AULA PONTUALMENTE ÀS SETE OU SETE E MEIA...AFINAL, AQUELE MENININHO COM QUEM IRIA FICAR? TINHA UMA AJUDANTE, DOCE NORDESTINA, JOVELINA, MAS COM SÉRIOS PROBLEMAS DE ORGANIZAÇÃO MENTAL. O QUE FAZER?
SEM MUITOS RODEIOS, PREMIDA PELA SITUAÇÃO, BATI NA CASA DA MINHA QUERIDA MEIRE, VIZINHA-IRMÃ, EXPUS O PROBLEMA E ELA SE INCUMBIU DE CUIDAR DO NENÊ NA PARTE DA MANHÃ. MEIRA VINHA DE UMA LUTA PARA ENGRAVIDAR. TRÊS TENTATIVAS INFRUTÍFERAS. NÃO PRECISO DIZER QUE, DEPOIS DA TAMBÉM ADOÇÃO POR ELA DO MAURÍCIO – É ESTE O NOME DO MOTIVO DESTA FALAÇÃO- DEPOIS DESTE ACONTECIMENTO, TRÊS ANJINHOS TARDIOS VIERAM ENFEITAR A EXISTÊNCIA DA TAMBÉM DOCE MEIRE.
PRECISO INFORMAR QUE ESTA HISTÓRIA É QUASE UMA HISTÓRIA SEM FIM, MAS, PARA COMEÇAR, SERVE COMO ENTRADA, PARA NÃO DIZER PRÓLOGO, ETA PALAVRINHA FEIA!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

SEM PEIAS- Por Maria Tereza Callefe



Literalmente de mãos e pés atados. Deixo para os outros a honra de vencer os obstáculos. A mim, só a mim cabe o direito de dizer chega. Não posso mais. Às vezes sento-me perto da nesga de sol e acho que vou enxugar este lodo que teima em escorrer por dentro da alma. Sim, tenho uma excelente teoria para discursar sobre as grandes vantagens de passar por cima de brasas sem me queimar. Teorias, excelentes. Na prática esborracho-me e deslizo ocultamente por estes barrancos que nos levam ao fundo de nós mesmos. O que encontrarei lá? Não sei. O que sei e sei muito bem é que neste momento quisera ter mãos e pés desatados e ir-me como dizia o poeta, não por aí, para onde me convidam sorrateiramente, mas o que eu quero mesmo é evadir-me e caminhar solta ao vento, carregada por minhas emoções, meus desejos, meus sonhos, caminhar comigo, sozinha, sem peias.
Mas hoje o que de mim sei é que de pés e mãos atadas pouco sou, embora os sábios me falem da beleza dos caminhos agrestes.
Quero um bosque quente, morno, com crianças me chamando para brincar de ciranda cirandinha e de passa anel.
Hoje é só isto que quero. Nada mais. Muito menos discursos...

Caraguá, 12 de junho de 2005.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Sala de aula. Estrela D’Alva. Agosto de 85- Por Maria Tereza Callefe


(Enquanto os alunos escreviam, eu me perguntava sobre o sentido da minha presença, ali, naquela sala, com eles...)

São rocha ainda. Há vida, entretanto, pronta para se organizar e se manifestar através do sonho e da fantasia.
Estão curvados ainda ao peso de um aparente não-saber.
Haverá qualquer dia a explosão magnífica do despertar.
Nesse dia então me perguntarei: que fiz com eles, que semente, através de minha esperança de vê-los crescer, lancei de mim?
Quais foram os dias em que o meu “não” estaria carregado da mais pura força que existe entre a terra e o céu?
Quais foram os dias em que o meu “sim” foi porto depois da tempestade, amanhecer depois das trevas, amparo depois dos desencontros?
Nesse dia, então, quando abrirem suas asas e alçarem o voo mais seguro que a liberdade confere às criaturas, nesse dia, certamente, terei iniciado a minha caminhada.
Serei um ponto quase apagado na imensidão dos tempos.
Não haverá nem mestre, nem aprendiz. Haverá apenas um leve roçar de emoção na ponta dos laços finalmente desfeitos.