26 de agosto de 1958. Manhã de sol. Baía da
Guanabara. Paraíso encontrado. Reflexos dos montes no mar. Deslumbramento.
Acredito que nunca mais terei a sensação de chegada- a que sempre estava
partindo. A baía abraçava os imigrantes, docemente, no jeito de festa só para
alguns, os mais esperados. Assim me sentia naquela manhã tão cheia de luz, mas
tão cheia a ponto de me doer o peito. Sempre tive esta reação diante do
indescritível: uma dor amarrava-me o peito e ficava sem fala, curtindo docemente
uma catarse desejada. Ah, Rio de Janeiro, visto de longe, há tantos anos, que
saudade...
Havia ainda um outro porto, o último. Outros já se
foram: Lisboa, o da despedida, Las Palmas onde comprei uma boneca, que mania de
boneca até aquela idade – 20 anos.
Recife, e uma bebida deliciosa, o travo bom e
definido dos trópicos: guaraná. Se as crianças de hoje soubessem que sabor...
Ainda está na memória gustativa. No Rio de Janeiro, outra doçura que eu curto
até hoje: banana ouro.
Agora o último porto: Santos. Lá estava a família.
Achei meus tios muito velhos e o comentário pulou rapidinho sem que pudesse
contê-lo. Claro que não gostaram. Lembro-me de que o Rafael, um dia chegando a Caraguá,
veio com esta: Vó, como você está velha!. Só que ele tinha 6 ou 7 anos e eu,
quando fiz o comentário infeliz tinha 20 anos. Lerda que eu sou. .
Lembro-me de que fui beber água na biquinha de São
Vicente, tradição mantida pelos
imigrantes para ficarem para sempre no
Brasil . Com água da biquinha ou sem ela, quero morrer nesta terra, minha
verdadeira vera cruz. Passados 48 anos, estou-me vendo descendo as escadas do
navio de boneca ao colo e acho que era daquelas de papier machê que não podem
ser lavadas... Enfim. Ninguém é perfeito. Mas as coisas que deveriam ser estão
tão longe, tão perdidas que já não doem mais. Lembro-me também, vagamente, de que tivemos que aguardar a
bagagem na alfândega. Acho que almoçamos num restaurante, não tenho certeza e
depois fomos para São Bernardo do Campo onde meus tios moravam. Quando fui
chegando perto da Brastemp, o coração caiu-me aos pés, quase literalmente. Que
entrada feia. Tinha vindo de Lisboa, cidade linda, alegre, colorida, aberta
para o Tejo, de olhos posto no mar infindo, e agora eu ali, emparedada, sem o
meu horizonte de todos os dias – o mar – a grande janela aberta por onde sempre
consegui me evadir. Que feio que era tudo aquilo. Pensei que não fosse suportar
as saudades. Chorava todos os dias. Vivia no correio mandando cartas. Se
tivesse dinheiro teria voltado para Portugal, sem pestanejar. Ainda bem que não
havia essa possibilidade. Foi melhor assim. Sempre tive os obstáculos como
anteparos para atitudes que não deveria tomar.
Tive todo o apoio do tio Caetano para continuar os
meus estudos. Deveria terminar o curso clássico, naquela época correspondente
ao segundo grau. Só que havia um tal exame de adaptação. Deveria fazer provas
de matérias que não tivera em Portugal: História do Brasil, Geografia do Brasil
e Latim. E tudo em nível de 2º grau. O
problema era latim: onde e com quem estudar? Tio Caetano conhecia uma senhora
italiana, professora. Levou-me até ela e ali fiquei conhecendo uma das grandes
amigas desta terra: D. Ernestina. Que professora! Vai ter um capítulo especial
nestas lembranças. Em poucos meses, pôs-me no ponto de traduzir Virgílio, com alguma dificuldade, é certo.
Consegui aprovação nesse tal exame de adaptação que, por sinal, não foi muito
fácil. Na altura, já estava matriculada num colégio de 5ª categoria: Instituto
de Ciências e Letras “Alfredo Pucca”. O nome impressionava, mas o nível era de
chorar. Mais tarde, quando conheci meu marido, fiquei sabendo que ele também
tinha estudado lá, alguns anos antes de mim – temos 6 anos de diferença. Por
pouco ele não me passava a cantada naquela época. Mas , ao que parece, nós dois andamos uns 20 anos em
círculo, até que a vida virou uma esquina e aqui estamos nós há 31 anos fazendo
piruetas nesta estrada, meio picadeiro, meio passarela, meio trilha, meio palco
iluminado. Mas esta nossa história merece um capítulo à parte, muito especial.
Até lá, muita água vai rolar.
Caraguá, 07 de
abril de 2003.
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