quinta-feira, 7 de novembro de 2013

HISTÓRIA DE UM MENINO DE RUA - Por Maria Tereza Callefe


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A DIREÇÃO DA SETA
Era uma vez....
Assim vai começar a história cheia de uma luz de astros de longínquas galáxias.
Então, era uma vez uma jovem senhora numa tarde de domingo luminoso. Único dia de folga, já que vivia envolvida com um lar que já fora lhe apresentado pronto: três filhos adolescentes, - filhos de uma jovem mãe que a vida não permitiu permanecer muito tempo neste plano – três cachorros, um papagaio que falava palavrões, um marido por quem ela ficara com os quatro pneus arriados e uma profissão -: professora de Português, profissão pela qual se apaixonara desde os primeiros anos de sua alfabetização, numa perdida ilha, de um remoto arquipélago, paraíso perdido no Atlântico.
Pois bem, a jovem senhora resolvera, naquele domingo, visitar uma prima, dirigente de um lar de crianças para que ela visse o desenvolvimento de uma criança, adotada há um ano.
Cumprimentos, abraços, “nossa, como cresceu...” essas palavras de sempre.
Numa dada altura, Marlene, a doce dirigente do lar vem com uma novidade:
palavras textuais:
“Chegou um menininho de cinco dias e gostaríamos muito que ele fosse adotado por um casal espírita.”
Pensei comigo: “se o recado é para mim, nem pensar. final de ano, um monte de provas para corrigir, conselho de classe, casa, adolescentes com todas as características que lhes são peculiares, três cachorros, feinhos, um papagaio boca suja, um marido com uma vida financeira não muito estável, nem pensar...”
A outra jovem senhora, saiu e voltou com um pacotinho, aquele que se usava para enrolar criancinhas. Colocou o pacotinho nos meus braços e então, o que era apenas um domingo ensolarado virou o happy day mais emocionante de toda a minha vida. Quando fixei o rostinho daquele nenezinho bateu, como se fora técnica de fotoshop, a fotografia de meu avô Maurício. Um avô que eu não conhecera, mas do qual havia uma fotografia na velha sala de minha avó. Quanto tempo durou esse êxtase, não posso medir. Fiquei numa outra dimensão a ponto de não ser capaz de ver o meu marido e a outra criança na minha frente. Foi preciso que a Marlene, a doce Marlene, percebendo o fato, já que era vidente de primeira  linha, me sacudiu, levei um susto e voltei. Cumpriu-se, assim, o que estava escrito nas estrelas: num domingo de sol duas criaturas se encontraram depois de longas caminhadas pelas sendas da evolução. Conclusão: fui de bolsa e voltei com um menino de cinco dias – ainda com o umbigo para curar – uma mamadeira e um pacote de fraldas. O que eu não havia pensado era nos três adolescentes, três cachorros, um papagaio, um marido meio encrencado financeiramente, um monte de provas, sala de aula pontualmente às sete ou sete e meia...afinal, aquele menininho com quem iria ficar? Tinha uma ajudante, doce nordestina, Jovelina, mas com sérios problemas de organização mental. O que fazer?
Não tive dúvidas. Meire, minha vizinha querida, casada, sem filhos, três tentativas infrutíferas de engravidar. Vai ser ela mesma. Bati ao portão. Dei a notícia, assim sem mais nem menos:
Meire, você fica com este nenezinho na parte da manhã? Ela não teve coragem de negar; hoje é também Mãe Meire do Maurício. Depois deste “encontro”, deu à luz mais três vezes. Lindos filhos!
Fraquinho, diarreia, sem força para chupar o leite, tinha que dar mamadeira de conta-gotas. Com o tempo fui me ajeitando, desconsiderei propostas médicas e esta criaturinha foi crescendo, crescendo, aprontando todas as artes possíveis, coisa de aventureiro e os cabelos brancos da mãe aparecendo. Não era respondão, bom coração, mas a vida era coisa para ser vivida. Assim continuou, adolescência típica, como todas.
A título de caracterização desta criança, para se entender o que vem pela frente, vale contar algumas peraltices, dignas de um seriado.
Uma vez, nós morando na cidade de Socorro, desapareceu durante a manhã. Era fascinado por rio, havia o Rio do Peixe, logo, o pressentimento: Meu Deus!
 Maurício!!!!,
Me esgoelei pela vizinhança. Nada. Ele simplesmente estava em cima do telhado assistindo a uma quase trágicomédia.
Da outra vez, ganhou uma roupa de Batman, subiu num velho fusquinha, disse as palavras mágicas – com toda a certeza iria voar – e estatelou-se no paralelepípedo. Deveria ter uns cinco anos. Era apaixonado pela vizinha loira, a Marli, filha da Lalá, muito mais velha que ele. Ficou apavorado e se escondia para ela não ver no rosto as marcas da infrutífera aventura.
São muitas, mas vou resumir a última.
 Estávamos passando as férias numa casinha de um pescador da praia Fortaleza, aqui em Ubatuba. Saudades do velho Dario. a casa era quase encostada na praia. As crianças ficavam à vontade. Todos se conheciam. Numa manhã, notei que não havia sinais de que Maurício tivesse estado por ali. Panelas intocadas e nenhum short jogado no chão. Toca a procurar. Horas. Verão de 42 graus. As pedras pelavam, Geraldo mergulhou pela costeira, senhor Dario tirou o bote, todos alarmados .Um vizinho saiu com a lancha. Eu comecei a passar mal. Já estava arroxeando. Maísa e Milena em prantos. Márcia, minha enteada, foi até o hotelzinho ali mesmo na praia e perguntou por um menino chamado Maurício. O encarregado entrou, procurou e veio com a triste notícia.
 Não, aqui só tem um menino diferente, mas chama-se Marcelo.
Márcia, como sempre muito perspicaz, resolveu entrar. Maurício, brincando com um menininho gringo.
Solução : ele estava com uma camiseta ganha de um filho de uma amiga nossa, com aquelas letras douradas nas costas: “Marcelo”.
Estava radiante.  A mãe do gringuinho tinha lhe dado batata frita e guaraná. Deve ter pensado: tadinho, um negrinho caiçara com fome....
Quando, mais tarde, me perguntaram se eu tinha dado umas boas palmadas, imaginem só...final feliz mais luminoso que este só merecia sinfonia de aplausos do coração.
Estes detalhes talvez sirvam para avaliar a decisão do Maurício trinta anos mais tarde.
Nessa época, vivia me queixando de muito mal estar gástrico. Depois de vários exames, veio o resultado: cirrose hepática. O gastro me deu uma bronca:
 Dona Tereza, a senhora bebe?
 Não, doutor.
 Não mesmo?
 Não senhor, quem bebia , mas agora está em abstinência há 30 anos, vai entrar depois de mim.
 Era o Geraldo.
Hoje, quando rabisco estas lembranças, faz 41 anos que em casa não entra bebida. Eu acompanhei o hábito do marido...noblesse oblige,  mas foi ótimo porque o que vinha a seguir, depois da consulta, exigia este cuidado.
 Doutor Marcelo Ugatti, a reserva moral da medicina na minha cidade, orientou-me para um infectologista. Depois de vários exames, um caríssimo, carga viral, o diagnóstico: hepatite C com nódulos cancerígenos
Idas constantes para o hospital AC Camargo.
Tive que entrar na fila de transplantes. 68 anos não é a melhor idade para ser privilegiada, já que existem criaturas com uma vida longa pela frente, mães com filhos para criar. Disto eu tinha plena convicção sem questionamentos outros que não fossem os da ética.
Maurício, na época ,trabalhava na Petrobrás em São Sebastião. Em surdina foi pesquisando com o amigo, o Tubaína, a respeito de transplante de fígado. Um dia chega em casa e com aquele vozeirão convincente:
Vou doar meu fígado para a senhora.
 Nem pensar, respondi.
 Coisas de mãe.
Por conta própria, Maurício foi fazer exames de compatibilidade: totalmente compatível: dna espiritual, só podia ser.
Marcada a cirurgia. Fiquei com gripe. Adiada a cirurgia. Marcada de novo. Já estávamos internados e meu filho ficou com febre alta. Voltamos para casa. Finalmente, no dia 19 de março de 2007, fomos operados. O pós operatório teve as intercorrências naturais de um procedimento mais ou menos complicado, mas isto não vai empanar a luz com que duas criaturas foram banhadas , aquela luz que milênios atrás deve ter pontilhado este caminho, aquele percorrido pela seta, pela direção da seta. Hoje estamos mais do que nunca enlaçados .
Como diz o Maurício, “nós dois nos salvamos” e ele bem sabe que novo horizonte foi vislumbrado para a sua destinação como filho de Deus.
Meu negrinho do coração, meu doce menino de artes, meu sempre encantado com tudo o que a vida e a natureza oferecem, hoje nós dois somos gratos a esta doce conspiração do universo, reverenciamos a vida sempre, esta dádiva da qual, sem falsa modéstia, nos consideramos cocriadores.

Caraguá,  6 de novembro do ano da graça de 2013.

(ao som de a Paixão Segundo Matheus – de Teleman)



5 comentários:

  1. Emocionante do início ao ... eu ia escrever final, mas uma história de amor assim não tem final.
    Parabéns Maria Tereza por seguir a seta e ser a protagonista dessa história maravilhosa. Não creio que eu seja capaz de dizer mais nada, enfim, Deus lhe pague.
    Um grande abraço e toda a minha admiração.

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    1. VITÓRIA, FIQUEI EMOCIONADA COM AS TUAS CONSIDERAÇÕES ESPECIALMENTE "MAS UMA HISTÓRIA DE AMOR ASSIM NÃO TEM FINAL"
      PRECISAMOS NOS VER UM DIA, QUERIDA. PARECE-ME QUE JÁ ANDAMOS POR AÍ BATENDO PERNA NESTA CIRANDA DOS ENCONTROS FELIZES..
      .DIO LO SA...

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    2. Obrigada minha querida Maria Tereza. Vamos nos ver sim, mas você é quem é especial. Um grande beijo.

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  2. Que linda história Maria Tereza querida. As gestações da "mãe" Meire me comoveram. Como sempre, o sincronismo das dimensões elevadas foi perfeito. Mérito seu! Que lindo esse capítulo de sua vida que, provavelmente, é um livro escrito com amor, alegrias e dedicação total. Parabéns pela atitude e pela história.
    Abraços do meu coração a vocês três. Mainara

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    1. Pois é, Maynara, gestei três crianças dessa forma, depois de ter experimentado por duas vezes a gestação física. Aos 7 meses de gestação, os anjinhos pensaram bem e resolveram: vixe Maria. uma mãe portuguesa...tô fora...

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