Lá
estava ela e seu companheiro de décadas. Sentados num velho sofá que deveria
ter segredos jamais revelados. Chovia muito. Parecia até que naquele dia cheio
de neblina o universo inteiro se cobrira com um luto inevitável. Estavam todos
de luto. Amores perdidos, vida fragmentada em estilhaços de muita dor. Será que
um dia voltariam a sorrir? Talvez... Os olhos azuis de uma transparência divina
já adivinhavam o que estava para ser dito. De pé, na porta do cobertinho dos
fundos, um jovem casal; ele já fizera parte da
história daquelas duas criaturas, cheias de dignidade e silêncio. “Esta é a
minha nova companheira”, arriscou meio timidamente o rapaz. Os olhos azuis
transparentes percorreram léguas em segundos; o que iriam buscar? Conforto,
alegria, tristeza, saudade, medo? Só mais tarde tive a resposta: aquele, sim,
era o verdadeiro olhar dos justos, dos que perdoam sem reservas, dos que tudo
entendem, dos que respeitam o caminhar dos menos sábios. Ah, minha Irene boa,
seu olhar ainda me acompanha quando os dias são lentos e escuros, quando é
melhor calar , quando não há nada mais a esperar. Esse olhar ainda hoje é meu
farol apontando rumos.
Pois é.
Foi assim o meu primeiro encontro com a Irene que quase levitava para não
incomodar os que ainda se refestelavam “atrapalhando o trânsito”. O rapaz,
muito diplomaticamente, me deixou sozinha com Irene no cobertinho, alegando que
precisava comprar alguma coisa para o
almoço. Lá fomos nós duas para a cozinha, lugar quase sempre apropriado para as conversas ao pé do
fogo. “E agora?” Tive uma excelente
saída: como sou dada a panelas e temperos, fui encostando a barriga no velho
fogão. Não me lembro se conversamos, o que conversamos, talvez cada uma de nós
estivesse preparando uma adequada lista de palavras para não “melar” o meio de
campo. Finalmente terminamos de preparar um franguinho com batatas. A certa
altura ,reparei que Irene, com a panela na mão, olhava indecisa. Arrisquei uma
pergunta: “está precisando de alguma coisa?” Toda encabulada acabou confessando,
como se fora uma grande falta, que não tinha uma travessa. “Que é isso, dona
Irene? Vai mesmo na panela”.Ela não sabia que eu já tinha ido
descalça para a escola, que muitas vezes chorava de manhã porque só havia café preto, que
muitas vezes jantava dois copos bem
grandes de chá, enfim , que eu era de
carne e osso, que aquele franguinho iria ficar ficar bem mais gostoso e
quentinho na panela. “Então você não se
importa?”
“Claro
que não, disse eu.”
Naquele
momento o mundo se fez doce, morno, aconchegante. Irene abriu os braços onde
tantos tinham se aninhado, bons e menos
bons, fortes e nem tanto, aqueles braços
me recolheram, afugentaram meus medos, e eu, então me fiz naquela hora a
menina que um dia vira de perto a solidão de noites frias. Hoje ainda eles
estão prontos recolhendo os que estão para chegar. A dor que me fustiga é de
saber que, se houver um encontro, será tão fugaz como um sopro.
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