sábado, 29 de dezembro de 2012

IRENE BOA- Por Maria tereza Caleffe





Lá estava ela e seu companheiro de décadas. Sentados num velho sofá que deveria ter segredos jamais revelados. Chovia muito. Parecia até que naquele dia cheio de neblina o universo inteiro se cobrira com um luto inevitável. Estavam todos de luto. Amores perdidos, vida fragmentada em estilhaços de muita dor. Será que um dia voltariam a sorrir? Talvez... Os olhos azuis de uma transparência divina já adivinhavam o que estava para ser dito. De pé, na porta do cobertinho dos fundos, um jovem  casal; ele já fizera  parte  da história daquelas duas criaturas, cheias de dignidade e silêncio. “Esta é a minha nova companheira”, arriscou meio timidamente o rapaz. Os olhos azuis transparentes percorreram léguas em segundos; o que iriam buscar? Conforto, alegria, tristeza, saudade, medo? Só mais tarde tive a resposta: aquele, sim, era o verdadeiro olhar dos justos, dos que perdoam sem reservas, dos que tudo entendem, dos que respeitam o caminhar dos menos sábios. Ah, minha Irene boa, seu olhar ainda me acompanha quando os dias são lentos e escuros, quando é melhor calar , quando não há nada mais a esperar. Esse olhar ainda hoje é meu farol apontando rumos.
Pois é. Foi assim o meu primeiro encontro com a Irene que quase levitava para não incomodar os que ainda se refestelavam “atrapalhando o trânsito”. O rapaz, muito diplomaticamente, me deixou sozinha com Irene no cobertinho, alegando que precisava comprar alguma coisa  para o almoço. Lá fomos nós duas para a cozinha, lugar quase sempre  apropriado para as conversas ao pé do fogo.  “E agora?” Tive uma excelente saída: como sou dada a panelas e temperos, fui encostando a barriga no velho fogão. Não me lembro se conversamos, o que conversamos, talvez cada uma de nós estivesse preparando uma adequada lista de palavras para não “melar” o meio de campo. Finalmente terminamos de preparar um franguinho com batatas. A certa altura ,reparei que Irene, com a panela na mão, olhava indecisa. Arrisquei uma pergunta: “está precisando de alguma coisa?” Toda encabulada acabou confessando, como se fora uma grande falta, que não tinha uma travessa. “Que é isso, dona Irene? Vai  mesmo  na panela”.Ela não sabia que eu já tinha ido descalça para a escola, que muitas vezes chorava  de manhã porque só havia café preto, que muitas vezes  jantava dois copos bem grandes de chá, enfim , que  eu era de carne e osso, que aquele franguinho iria ficar ficar bem mais gostoso e quentinho na panela. “Então você  não se importa?”
“Claro que não, disse   eu.”
Naquele momento o mundo se fez doce, morno, aconchegante. Irene abriu os braços onde tantos  tinham se aninhado, bons e menos bons, fortes e nem tanto, aqueles braços  me recolheram, afugentaram meus medos, e eu, então me fiz naquela hora a menina que um dia vira de perto a solidão de noites frias. Hoje ainda eles estão prontos recolhendo os que estão para chegar. A dor que me fustiga é de saber que, se houver um encontro, será tão fugaz  como um sopro.

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